Título: Autonomia, justiça ou secessão?
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 12/06/2005, Internacional, p. A13

Nacionalização dos hidrocarbonetos. Assembléia Constituinte. Autonomia provincial. Apesar de advirem de diferentes setores da sociedade boliviana, estas demandas apontam para uma crítica comum: a extrema centralização de poder do Estado, que falha em distribuir riquezas, seja para indígenas, camponeses ou a elite das províncias do Leste, produtoras de gás natural e petróleo.

- Com o modelo político vigente na Bolívia, as elites formadas há 30 anos têm limitado acesso à distribuição de forças e administrações regionais encontram limites de eficiência - afirma ao JB o sociólogo Alvaro Linera, da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz.

Duas propostas sobre autonomia regional estão no centro do debate. A primeira, popular, acha que as províncias devem ter direito a administrar seus recursos, mas que as riquezas do subsolo devem se manter sob poder estatal. A segunda, mais radical e forte neste momento, é a apresentada pela rica Santa Cruz de la Sierra, que gera 30% do Produto Interno Bruto (PIB) boliviano (de US$ 7,8 bilhões). No âmbito político, pede a eleição direta de prefeitos, governador e congressistas locais, como num regime federal. No econômico, exige o gerenciamento total de seus ganhos, inclusive os provenientes do petróleo e gás natural.

- O que ocorre agora é que dos US$ 500 milhões que Santa Cruz envia por ano a La Paz, voltam só US$ 200 milhões. E dos 18% de impostos que as transnacionais exploradoras de hidrocarbonetos pagavam ao governo, retornam 11%. O que se quer é que 66% de tudo que se produzir em uma região permaneça nela. Os outros 34% seriam repassados a La Paz - esclarece o cientista social Gustavo Pinto, da Universidade Católica, em Cochabamba.

Além de Santa Cruz, as regiões de Tarija, Beni e Pando apóiam esta proposta. Tarija é o departamento que mais produz gás natural na Bolívia - quase 90% do total. Santa Cruz é o mais forte em petróleo. Ambas as províncias recebem 11% dos impostos das transnacionais. Apesar de serem mais agrícolas do que energéticas, Pando e Beni ficam, cada uma, com 1% do repasse cruceño, ''porque temos identificação cultural'', explica Pinto.

A idéia é que com o montante de 66% da produção total - incluindo energia, agricultura, indústria - cada região seja capaz de financiar seu desenvolvimento.

- Santa Cruz, por exemplo, vem sofrendo um grande crescimento demográfico, com a imigração de camponeses e mineradores para as indústrias, e precisa planejar seus gastos sem depender de La Paz. Há pouco investimento em saúde, educação - diz Pinto.

No entanto, especialistas acreditam que, se bem organizada, a eventual autonomia das duas províncias mais ricas de um dos países mais pobres da América Latina não causará o colapso das demais regiões, essencialmente agrícolas e dependentes do governo central.

- A descentralização vai trazer novos atores ao poder nacional, o que é sempre positivo - acredita a historiadora Pilar Domingo, da Universidade de Salamanca, na Espanha.

- Em termos de eficácia administrativa, a redistribuição de forças será benéfica - concorda Linera.

Pinto lembra ainda que a proposta de autonomia prevê a criação de um ''fundo de compensação'', sob controle do Palácio Quemado e fiscalizado por autoridades regionais, no qual 10% dos 66% de recursos gerados por cada departamento seriam vertidos para regiões que ainda não tenham conseguido formar uma base autônoma.

O maior revés, aponta, sentirá a máquina governamental:

- La Paz tem 200 mil funcionários estatais. Se Santa Cruz deixar de contribuir com os US$ 300 milhões atuais, toda a burocracia de ministérios terá que ser reduzida. O Estado funciona assim há 178 anos, com este discurso de unidade nacional que saqueia as províncias - critica.