Título: Além do Fato: As duas faces de uma tirania
Autor: Mai Yamani*
Fonte: Jornal do Brasil, 12/06/2005, Internacional, p. A15

Uma maré de democracia parece estar percorrendo o mundo árabe. Mesmo as monarquias mais tradicionais e os emirados estão mudando ao serem atingidas por essa onda. O Kuwait agora permite que as mulheres tenham direito a voto e o Catar deu início a um ambicioso programa de reformas. O Bahrain tem demonstrado grande tolerância com as demonstrações de massa e os Emirados Árabes Unidos estão permitindo o funcionamento de algo semelhante a uma imprensa livre. Mas a Arábia Saudita continua a ser profundamente resistente a qualquer tipo de mudança, e permanece como um enorme e aparentemente irremovível obstáculo à uma reforma ampla em toda a região. Embora a família real saudita, a Casa de Saud, esteja sob enorme pressão para seguir o exemplo de seus vizinhos, a resistência interna para que isso aconteça continua sendo muito forte. Assim, os Saud são um ser com duas faces, como Janus: olhando em uma direção, a família real encoraja os reformadores da democracia a se expressar, enquanto o olhar para o outro lado os prende quando saem às ruas.

Em 15 de maio, em um julgamento fechado sem que os acusados tivessem representação legal, três dos principais reformistas ¿ Ali Al Dumaini, um conhecido jornalista e poeta, e os professores universitários Abdullah Al Hamid e Matruk al Falih ¿ foram condenados a sentenças de prisão que variaram entre seis a nove anos. O crime dos três foi pedir por uma monarquia constitucional. O veredicto oficial afirma que os reformistas se tornaram uma ameaça à unidade nacional, desafiando as autoridades e incitando a opinião pública contra o Estado enquanto se valeriam de ¿terminologia estrangeira¿, isto é, ¿ocidental.¿

Não muito tempo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, esses reformistas liberais se uniram a 160 outros profissionais para escrever e assinar uma petição ao príncipe regente Abdullah na qual pleiteavam mudanças políticas. O texto pedia à monarquia que trabalhasse dentro de limites estabelecidos constitucionalmente e a criação de um Judiciário independente. Os reformistas acreditam que essa renovação é a única forma de a Arábia Saudita sobreviver à ameaça de violência, de instabilidade e da fragmentação nacional que se vislumbra em seu horizonte. Só uma Constituição, argumentam , pode restaurar a maior parte da legitimidade necessária para um sistema político que é largamente percebido como profundamente corrupto e inepto.

O príncipe regente Abdullah ¿ o governante de facto da Arábia Saudita desde que seu irmão, o rei Fahd, ficou incapacitado ¿ quer ser visto como um campeão das reformas. Recebeu as propostas enviadas pelo grupo de forma calorosa em janeiro de 2003. Porém, seu meio-irmão e rival mais poderoso, o príncipe Naif, Ministro do Interior, ordenou as prisões, o julgamento e o encarceramento de 13 reformistas em março de 2004. O príncipe Abdullah não ofereceu um vislumbre de oposição à medida, deixando a agenda da reforma que havia iniciado em uma terra-do-nunca política.

De forma a manter o poder absolutista e minimizar a ira da opinião pública, os príncipes sauditas, liderados por Naif, pediram aos reformistas que assinassem um acordo pelo qual se comprometeriam a nunca mais pedir por mudanças. O príncipe baniu a palavra ¿reforma¿ dos discursos públicos porque sugeria que poderia haver algo de errado com o sistema ¿ seu termo preferido é ¿desenvolvimento¿. Dos 13 presos e condenados, 10 aceitaram se submeter, mas os três que se recusaram estão pagando o preço. Permaneceram encarcerados em Riad sem qualquer acompanhamento jurídico até o veredicto final. Os que aceitaram assinar tiveram seus passaportes confiscados, perderam os empregos e estão proibidos de falar com a imprensa.

Sob pressão regional e internacional, a família real saudita construiu uma ¿Vila Potemkim¿ da reforma enquanto manteve o controle absoluto sobre todos os desdobramentos políticos. No começo desse ano, realizaram uma parcial e altamente controlada eleição municipal, sem que qualquer visão independente pudesse se expressar no momento em que as urnas foram abertas. Toda a população feminina foi excluída e só um quarto dos homens estava apto a votar. Inevitavelmente, os islamitas wahabbitas, grupo da família real, ganharam.

Os Saud se deparam com duas ameaças: uma dos islâmicos radicais e outra dos liberais reformistas. Há fortes indicação de que temam bem mais os segundos. Talvez os príncipes acreditem que é mais fácil matar ¿terroristas¿ do que aceitar as demandas por justiça social. Além disso, ao matar os radicais violentos e aliados da Al Qaeda, são aplaudidos pela comunidade internacional, especialmente os Estados Unidos, como parte do sucesso na guerra ao terrorismo. Mas enquanto caçam e eliminam os extremistas domésticos, estão silenciosamente apertando o laço em torno dos que querem reformas moderadas. Esta repressão aos liberais passou sem ser noticiada na maior parte do mundo, com o silêncio da América sendo algo particularmente estrondoso.

Esse silêncio é vital aos príncipes, para quem o apoio americano é precioso. Enquanto as coisas seguem na Arábia Saudita, a administração americana não possui aliados com credibilidade para mudanças fora do regime atual. Assim, diferente do que houve na Ucrânia, Geórgia, Quirguistão e Líbano, não há nada que possa encorajar uma oposição popular. Enquanto o regime de Saud convergir para as necessidades de petróleo dos EUA e da luta contra os radicais islâmicos, continuará a receber o apoio e o silêncio americano, ou seja, o tácito consentimento. Mas tapar os olhos é um erro. Aqueles que tornam revoluções pacíficas impossíveis fazem as revoluções violentas serem inevitáveis. Os liberais reformistas que estão presos pavimentavam o caminho de uma transição pacífica em uma Arábia Saudita reformulada. Ao prendê-los, o regime deixou claro que a violência é a única avenida para os que querem mudanças. (Project Syndicate)

*Pesquisadora convidada em Chatham House, Royal Institute of International Affairs, de Londres, e escritora