Título: Conjecturas irônicas
Autor: Diniz Esteves
Fonte: Jornal do Brasil, 11/06/2005, Outras Opiniões, p. A11

Neste mês de maio de 2005, completei 70 anos e, de repente, fui assaltado por um incômodo arrependimento.

Servi no Exército brasileiro durante cerca de 40 anos. Fiz todos os cursos normais e obrigatórios e mais alguns outros no Brasil e no exterior. Fiz mestrado e doutorado. Sempre fui bem classificado nesses cursos e fui um dos primeiros da minha turma de formação a entrar para a Ordem do Mérito Militar, à qual pertenço no grau de oficial. Nunca sofri uma punição sequer e nunca faltei a um único dia de serviço. Tanto que, ao ser declarado aspirante a oficial recebi o prêmio ''Disciplina e Assiduidade'' e fui convidado a assinar o livro de honra da Academia Militar das Agulhas Negras.

Prestei serviço no Estado-Maior do Exército por mais de 12 anos, fui instrutor em dois estabelecimentos de ensino, cumpri algumas missões no exterior, comandei um batalhão e uma guarnição e fui nomeado adido militar junto à embaixada brasileira em um país vizinho.

Durante todo o tempo de serviço, colecionei um grande número de elogios e incentivos de ilustres e conceituados chefes e comandantes e, com tudo isso aqui relatado, alcancei o honroso posto de coronel do quadro de Estado-Maior da ativa, quando, então, encerrei voluntariamente a minha carreira.

E agora, porém, bateu-me esse arrependimento atazanante.

Talvez, se eu tivesse assassinado alguns colegas no quartel, enquanto eles dormiam, pudesse ter sido promovido a coronel sem ter que enfrentar os duros anos de serviço na caserna e sem ter que lustrar os bancos escolares. E ainda teria o privilégio de ser considerado personalidade nacional, com direito a homenagens prestadas pelo governo e por diversos políticos.

Se eu tivesse roubado do quartel um lote de fuzis e de munições; desertado; renegado o solene juramento de oficial; liderado um movimento guerrilheiro insano; assassinado e assaltado bancos; talvez pudesse ter sido promovido a coronel e ser considerado herói nacional, com direito a nome em ruas e praças.

Talvez, se eu tivesse seqüestrado alguns embaixadores estrangeiros; cometido assaltos a bancos e a trens pagadores; se tivesse ido fazer curso de guerrilha em ditaduras próximas ou longínquas; colocado algumas bombas de fabricação caseira; se tivesse feito alguns ''justiçamentos'', matando até por engano; talvez, repito, pudesse ser agora, não um coronel, mas um eminente deputado ou senador, um presidente de partido político, ou, até mesmo quem sabe, um poderoso ministro. No mínimo, estaria recebendo do governo polpudas indenizações, que me permitiriam um fim de vida mais folgado.

E ainda mais, se não tivesse estudado tanto, formando uma biblioteca pessoal de mais de três mil livros, talvez pudesse aspirar a ser um líder político e presidente da República.

Reconheço que a ironia é uma maneira odiosa de expressar os pensamentos. O sarcasmo fere, incomoda e revolta. Às vezes, até mesmo confunde. É claro que não estou arrependido de nada do que fiz na minha carreira. Tenho um sólido orgulho de ser coronel do Exército brasileiro e muito me honra não ter deslizado para os caminhos trilhados por esses que agora são endeusados e indenizados.

Dentre os Quatro gigantes da alma, analisados pelo professor Emilio Mira y López no livro com este título, os únicos com que me pautei foram o dever e o amor, no caso, à Pátria. Jamais me deixei dominar pelo medo e pela ira.

A minha ironia, portanto, é fruto dessa incongruência que vem sendo praticada, desse incompreensível modo de premiar os que faltaram com o dever e que até me faz lembrar do consagrado poeta Luís de Camões, quando escreveu a ''Esparsa ao desconcerto do mundo'': ''Os bons vi sempre passar/ No mundo graves tormentos;/ E para mais me espantar,/ Os maus vi sempre nadar/ Em mar de contentamentos./ Cuidando alcançar assim/ O bem tão mal ordenado,/ Fui mau, mas fui castigado:/ Assim que, só para mim/ Anda o mundo concertado''.