O Estado de S. Paulo, n. 46627, 15/06/2021. Política, p. A4

E-mails mostram agilidade do governo por cloroquina

Julia Affonso
Vinícius Valfré


Troca de e-mails da diplomacia brasileira com a chancelaria indiana e representantes de farmacêuticas do país asiático mostra a agilidade com que o governo de Jair Bolsonaro buscou adquirir hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, medicamento sem eficácia comprovada contra a doença. Algumas mensagens foram respondidas pelo governo brasileiro em 15 minutos, à noite e até em fins de semana. O esforço pelo medicamento se contrapõe à postura do Executivo em relação às vacinas. No caso da Pfizer, o governo demorou pouco mais de dois meses para responder aos contatos da empresa.

A série de 54 e-mails expõe a atitude proativa do governo brasileiro para liberar cargas de matéria-prima da hidroxicloroquina a empresas que fabricam o medicamento no País. As mensagens foram enviadas pelo ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil na Índia, Elias Antônio de Luna e Almeida Santos, segundo na hierarquia do posto diplomático.

“Estamos acompanhando esta questão com muita atenção”, disse em um e-mail de 31 de março ao diretor de uma empresa fornecedora de hidroxicloroquina. Em outro, o diplomata brasileiro pediu “a maior urgência possível” a um representante de uma farmacêutica sobre o preenchimento de documentos.

Os documentos sigilosos, em poder da CPI da Covid, foram obtidos pela agência de dados Fiquem Sabendo, especialista em Lei de Acesso à Informação, e analisados pelo Estadão. Os e-mails foram trocados entre março e junho de 2020.

No dia 11 de abril de 2020, um sábado, Gaurav Kumar Thakur, secretário para América Latina e Caribe do Ministério das Relações Exteriores da Índia, escreve a Santos para oferecer uma carga de “50 lakhs” – unidade de medida indiana, equivalente a 100 mil – de comprimidos de hidroxicloroquina já prontos, uma vez que havia uma demanda brasileira pela matéria-prima do medicamento pendente de liberação. Não levou oito horas para que o funcionário do Itamaraty respondesse que “o governo brasileiro demonstrou interesse na oferta”.

“Independentemente dessa generosa possibilidade que o governo da Índia está abrindo ao Brasil, nós reiteramos que continuamos a buscar as permissões de exportação para a matériaprima de hidroxicloroquina que permitirá aos fabricantes brasileiros produzirem para si quantidades adicionais de comprimidos”, afirma Santos às 20h40 (no horário local) do mesmo dia.

Na noite do dia seguinte, domingo, o funcionário do Itamaraty envia um segundo e-mail cobrando agilidade do colega indiano por informações sobre a empresa que forneceria os comprimidos de hidroxicloroquina. “Se você pudesse fornecer os detalhes até amanhã de manhã ficaria muito grato, para que possamos iniciar contatos diretos com eles.”

Duas semanas depois, no dia 25 de abril, em outra troca de e-mails também num sábado à tarde, Santos levou apenas 15 minutos para responder à dúvida de um funcionário da empresa que providenciava a remessa dos produtos ao Brasil.

Modi. A agilidade em conseguir o medicamento sem eficácia comprovada não se resumiu ao funcionário da embaixada brasileira. Num e-mail de 6 de abril que tinha Santos entre os destinatários, T.C. Reddy, diretor de uma farmacêutica indiana, sugeriu a empresários brasileiros que, gentilmente, “pressionassem Bolsonaro” a falar com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para liberar a carga de hidroxicloroquina. O apelo do presidente ao premiê, porém, já havia ocorrido dois dias antes.

O esforço brasileiro pela cloroquina continuou mesmo após pesquisas apontarem a ineficácia do medicamento no combate à covid-19. Em 20 de maio do ano passado, a Sociedade Brasileira de Infectologia publicou um informe no qual afirmava que os “estudos clínicos com cloroquina ou hidroxicloroquina não mostraram eficácia no tratamento farmacológico de covid-19 e não devem ser recomendados de rotina”.

Quinze dias depois, no dia 5 de junho, Santos enviou emails a duas empresas indianas para saber preço, quantidade e prazo para entrega de difosfato de cloroquina, um dos componentes do medicamento.

Na mesma época, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciava que o Instituto Butantan produziria uma vacina em parceria com a biofarmacêutica chinesa Sinovac. Aliados de Bolsonaro usaram o fato para atacar o adversário político do presidente e pregar contra o imunizante.

Vacinas. O investimento de Bolsonaro para obter cloroquina em vez de priorizar a busca por vacinas é uma das frentes de investigação da CPI da Covid. Até agora, a comissão já recebeu 935 conjuntos de documentos, que somam 1,2 terabyte de informações.

Além das provas documentais, os senadores também contam com os relatos colhidos nas sessões para comprovar a responsabilidade do governo federal no descontrole da pandemia. Em depoimento à comissão, o ex-presidente da Pfizer no Brasil Carlos Murillo disse que nove ofertas de vacinas, feitas em cinco datas diferentes, ficaram sem resposta. O primeiro e-mail foi enviado em 26 de agosto ao Ministério da Saúde, que só respondeu em 9 de novembro.

O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contou 81 correspondências da Pfizer, de 17 de março do ano passado até 23 de abril deste ano, 90% delas sem resposta.

Além da Pfizer, a Coronavac também teve seu processo de compra atrasado. O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, relatou que propostas para compra de vacinas foram ignoradas por dois meses. E, mesmo após iniciar as tratavas, houve reveses. Em outubro do ano passado, Bolsonaro desautorizou o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e mandou cancelar a compra de doses do imunizante. A ordem do presidente levou a uma redução de 52 milhões de doses de vacina na quantidade que o País poderia ter obtido.

Negociação

Gaurav Kumar Thakur 

Secretário do Ministério das Relações Exteriores da Índia 

Elias Antonio de Luna e Almeida Santos

Ministro-Conselheiro  da Embaixada do Brasil na Índia

Sábado, 11 de abril de 2020, 01:09

Caro ministro Elias,

Isto é em referência à sua correspondência contínua com o Secretário-adjunto LAC sobre o fornecimento de HCQ para o Brasil. Vide e-mail anterior (uma cópia inclusa), o secretário-adjunto da LAC informou sobre a liberação de 530 KG de remessa de HCQ para o Brasil. Entendemos que você tem alguns outros pedidos pendentes de HCQ. A fim de garantir o abastecimento rápido da mercadoria durante esses períodos da pandemia COVID-19, fui orientado a ver se o seu lado está interessado em fazer um pedido de comprimidos de 50 Lakhs de HCQ no lugar das solicitações pendentes de HCQ. Solicitamos gentilmente que indique a sua disposição para esta oferta. Caso você esteja interessado, nós direcionaríamos você para a empresa onde o pedido pode ser feito.

Também solicitamos que você forneça detalhes quando o fornecimento de 530 kg de HCQ for liberado.

Cumprimentos,

Gaurav Kumar Thakur

Sábado, 11 de abril de 2020, 11h34

Caro Gaurav,

Obrigado pela sua mensagem. Temos que consultar Brasília sobre esta oferta e retornamos para você o mais rápido possível (tenha em mente a diferença de horário). Quanto à liberação dos 530Kg, ela foi liberada na quinta-feira à noite e está já a caminho do Brasil por via aérea.

Atenciosamente,

Elias Antonio de Luna e Almeida Santos

Sábado, 11 de abril de 2020, 2:31 PM

Caro Gaurav e colegas ,

Em continuidade ao meu e-mail anterior, esclareça o que significa “50 Lakhs Tablets”. É o produto final ou medicamento ou é a matéria-prima, sulfato de hidroxicloroquina, como na primeira remessa em que foi aprovada?

Atenciosamente,

Elias Santos

Sábado, 11 de abril de 2020 06:38

É o produto final em forma de comprimido.

Gaurav Kumar Thakur

Sábado, 11 de abril de 2020 20:40

Caro Gaurav,

Sobre a troca de mensagens abaixo, escrevo para confirmar que o Governo do Brasil demonstrou interesse na oferta pelo Governo da Índia de comprimidos de 50 Lakhs de Hidroxicloroquina. Por favor, compartilhe conosco os detalhes do ponto focal do fornecedor, para que possamos começar conversas diretas com a empresa. Independentemente dessa generosa possibilidade que o Governo da Índia está abrindo ao Brasil, nós reiteramos que continuamos a buscar as permissões de exportação para a matéria-prima de hidroxicloroquina que permitirá aos fabricantes brasileiros produzirem para si quantidades adicionais de comprimidos de

hidroxicloroquina. Essa produção nacional continua essencial para o atual e necessidades futuras para tratamento de COVID-19 e outras doenças no Brasil. Por isso, eu lembro dos formulários de licenciamento enviados ao MEA na última terça-feira.

Atenciosamente,

Elias Luna A. Santos

Domingo, 12 de abril de 2020 21:48:42

Caro Gaurav e colegas,

Boa noite. Ainda não recebi os dados de contato do fornecedor. Se você pudesse fornecer os detalhes até amanhã de manhã ficaria muito grato, para que possamos iniciar contatos diretos com eles.

Obrigado, cumprimentos,

Elias Santos

Ministério

Procurado pela reportagem do Estadão, o Ministério das Relações Exteriores não havia se manifestado sobre a troca de e-mails até a conclusão desta edição.