Título: Um toque de classe
Autor: Paulo de Tarso Lyra
Fonte: Jornal do Brasil, 20/06/2005, País, p. A2

Retorna José Dirceu à Câmara dos Deputados com dois projetos, entre outros. Um deles é ambicioso pelas dificuldades: o de combater denodadamente os inimigos de sua fé socialista, como Cid el Campeador combatia os mouros na Espanha. O segundo é o de enfrentar o deputado Roberto Jefferson, contra quem apresentou queixa-crime no STF. Qualquer que venha a ser o desfecho do duelo com o deputado do PTB, não será uma justa de cavaleiros medievais, em que as lanças têm a mesma medida e as clavas o mesmo peso. Esse ajuste de contas pode perturbar a visão do quadro político nacional. Há, para serem resolvidos, o caso criminal e a questão política. Crimes houve. Se não os de peculato e de extorsão, os de difamação, calúnia e falso testemunho. Há coisas maiores. Há o Brasil, há o mundo, e a eterna luta de classes, apesar da repetida morte de Marx e do anunciado velório das utopias. Dizia Hoffmansthal que o profundo está oculto - na superfície. A corrupção é crime tão repugnante quanto o latrocínio, em qualquer tempo e regime - porque o dinheiro desviado sempre falta para salvar, direta ou indiretamente, alguma vida. Por isso, cabe indagar por que, no governo passado, houve sinais evidentes de corrupção muito mais graves do que os atuais e não se mobilizaram os bons sentimentos da alta burguesia com a fúria com que se mobilizam hoje. A resposta é que falta ao operário Luiz Inácio da Silva aquele touch of class do antecessor e principais ministros. Está decretado, neste país, que bandidos só os há nas favelas e subúrbios. Quando alguém da alta classe média é apanhado participando de quadrilhas, basta um bom advogado para que escape da Justiça.

É certo que entre os suspeitos de hoje há pessoas de origem modesta, como é o caso do tesoureiro do PT. Sem entrar no particular, a simples origem de classe não torna ninguém melhor ou pior. Embora Roberto Jefferson e Sandro Mabel tenham reivindicado infância pobre, é melhor creditar essa disputa ao exercício da farsa. Um, se é verdade o que diz, começou como mensageiro em escritório de advocacia - mas pôde formar-se em Direito, o que não era tão fácil aos pobres quanto hoje. O outro, se carregou sacos, o fez no negócio familiar, que herdaria depois. Luiz Inácio, por mais que tenha melhorado de vida - e é fato que melhorou, o que é natural e explicável -, não conseguiu ser absorvido pelas pessoas de bem que, entre nós, são geralmente pessoas de bens. Elas, sendo de sua conveniência, tratam-no pessoalmente com respeito protocolar, e só isso. Houve, sim, da parte de alguns intelectuais soberbos e de bons burgueses, o interesse em administrar seus dotes de liderança, em proveito de projetos políticos ou interesses pessoais. Esses privilegiados jamais pensaram em ser conduzidos pelo sertanejo que emergia para a vida pública na porta das fábricas e, sim, em tutelá-lo, suprindo-o de idéias e conhecimentos. Quando Lula disse que não era homem de esquerda, não estava mentindo. Mas quando afirma que é solidário para com os pobres, está sendo verdadeiro. Ele não era homem de esquerda, entre outras razões, porque não conhecia história e filosofia. E para dizer a verdade, tampouco são muitos, entre os que o cercam hoje, depois das cisões conhecidas, e entre os que arrogantemente o combatem, que têm alguma coisa a dizer sobre essas duas expressões do conhecimento. Mas o presidente Luiz Inácio é homem vindo do chão mais árido do povo. É um estrangeiro entre os que sempre mandaram e continuam mandando no país, quer como titulares dos poderes de fato, quer como cortesãos, reunidos no reduzido clube da grande elite, e que nele vêem o usurpador de seus direitos hereditários.

Essa é a questão de fundo. Os Estados Unidos conseguiram descolar-se da aristocracia da Nova Inglaterra, com a eleição do outsider Andrew Jackson em 1828. Com isso, o regime deixou de ser dirigido por um clube de fazendeiros e intelectuais da Costa Leste para se tornar a grande democracia de massas. Com quase dois séculos de atraso, estamos na mesma encruzilhada.