Título: Zé Dirceu e o mito do complô
Autor: Gustavo Krause
Fonte: Jornal do Brasil, 22/06/2005, Outras Opoiniões, p. A13

''Vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo político democrático e desestabilizar o governo do presidente Lula''. Este trecho do discurso do ex-ministro José Dirceu foi pronunciado numa das cenas mais patéticas da recente história da República: o momento em que Sua Excelência desgrudava da Casa Civil (quinta-feira, 16 de junho).

Na sexta-feira, diante de uma platéia de militantes, Zé Dirceu acusou a ''elite brasileira'' de tentar interromper a trajetória do governo para ''impedir sua reeleição no ano que vem'' e, com base nas diatribes do ex-chefe da Casa Civil, o PT, no sábado (18 do mês corrente), aprovou resolução onde acusa setores da oposição, em especial, o PFL e o PSDB de pretenderem ''comprometer o governo Lula e a história do partido, desmoralizar a esquerda'' (ainda bem que a respeitável esquerda brasileira não se confunde com setores do PT) .

Qualquer iniciante de clínica psiquiátrica, não hesitaria no diagnóstico: o ex-ministro foi acometido de um surto paranóico. A paranóia, dizem os manuais de psiquiatria, é uma patologia do comportamento humano que repousa em dois mecanismos fundamentais: o delírio de referência e as ilusões da memória.

A propósito, com autoridade indiscutível, Freud identificava na paranóia ''um modo patológico de defesa por não conseguirem (os paranóicos) tolerar algumas coisas desde que seu psiquismo esteja predisposto a tanto'' e, acrescentava o que chamou de ''mecanismo de projeção'' segundo o qual o paranóico se defende de uma ''representação inconciliável com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externo'' a tal ponto que, conclui o gênio judeu-austríaco, ''amam seu delírio como a si mesmos''.

Com todo respeito que me merece, José Dirceu não está bem. A conquista e o impacto da perda do poder perturbaram-lhe o equilíbrio emocional.

De outra parte, qualquer iniciante nos estudos de ciência política identificará no discurso de Zé Dirceu o ''mito do complô'' que, ao lado da Idade do Ouro, do Salvador e da Unidade, constitui os grandes conjuntos da mitologia política.

Com efeito, o discurso do complô (ou da conspiração) procura mobilizar, explorar e desencadear imagens, fantasmas, impressões, forças, enfim, o misterioso mundo que habita o imaginário político. O mito não se esgota na narrativa do tempo imemorial: o mito mistifica e, ao alterar os dados da observação experimental, contradiz as regras do raciocínio lógico; o mito deforma o real e funciona como apelo à ação e estimulador de energias de enorme potência.

É procedente afirmar que a coerência e a lógica do delírio paranóico vão ao encontro da coerência e da lógica do discurso mitológico do complô.

É disso que Dirceu cuida e usa.

Cuida e usa porque, a despeito do surto, sabe o que está fazendo e o que está pretendendo.

Cuida porque atribui ao ''inimigo'' o poder que é da mesma natureza daquele que sonha possuir; cuida porque deseja sempre expandir o domínio dos acontecimentos e dos espíritos na mesma proporção em que projeta sobre o Outro sua vocação dominadora; cuida porque atribui ao Outro o papel de ator determinante da história do qual foi tragicamente excluído.

Usa porque sua formação totalitária é adepta do complô para justificar a eliminação dos adversários ou, no mínimo a sua desmoralização, o que está na raiz do terror jacobino, do terror stalinista, do terror nazista, do terror estadonovista brasileiro (como reação à conspiração do Plano Cohen que nunca existiu); usa porque sabe que o apelo ao imaginário político pode gerar o duplo legendário mediante o confronto entre o Bem e o Mal, a Luz e a Treva, o Cristo e o anti-Cristo, o Herói e o Vilão; usa porque imagina que pode brotar da chafurdação, viçoso e heroificado, capaz de induzir a sociedade que sofre a encontrar alguém sobre quem recaiam as dores da decepção.

O discurso do complô não cola; não tem aderência aos fatos. E os fatos estão à vista de todos.

Até outro dia a oposição era considerada pífia. Hoje, para o José Dirceu, é manipuladora de uma grande conspiração.

Ora, o governo Lula não precisou de oposição. O PT é governo ineficiente e oposição eficiente ao próprio governo como foi com Luíza Erundina em São Paulo, com Vitor Buaiz no Espírito Santo e com Cristovam Buarque em Brasília.

O capital político do presidente Lula vem sendo roído pelos ratos das crises que foram gestadas sob suas barbas, ou seja, nos gabinetes do Palácio do Planalto. O mensalão reflete o desprezo ideológico em relação à democracia representativa pelo Comissariado cujo chefe, José Dirceu, sempre assumiu, arrogantemente, a condição de Eminência Púrpura (aquela que manda e faz questão de não disfarçar a batina com a cor cinzenta ou parda).

Não foi a oposição quem expurgou quadros do PT; a oposição não foi responsável pela desilusão dos intelectuais petistas com o governo; a oposição não usou métodos da arapongagem para expor as vísceras dos escândalos. E não será a oposição que cometerá a irresponsabilidade de contribuir para uma crise institucional.

Neste grave momento, o mínimo que José Dirceu (além de sair de junto do presidente Lula) pode fazer para ajudar o PT e o governo a enfrentarem a crise é se libertar do jogo das imagens dos espelhos invertidos.