Título: Lula com a agenda livre
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 22/06/2005, Outras Opoiniões, p. A13

Empossada a ex-guerrilheira Dilma Rousseff na chefia da Casa Civil e se não mudarem as intenções anunciadas na recauchutagem do esquema de articulação política, o presidente Lula decidiu oficializar o seu método personalíssimo de exercer o mandato, com a nítida separação da gerência administrativa dos acertos políticos, deixando a sua agenda livre, com tempo integral para fazer o que gosta. Seria indelicado concluir que o presidente não terá nada com que se ocupar. Não é bem assim: Lula não sabe nem tem paciência para tocar a rotina burocrática, com horas tediosas de despachos com ministros, secretários; a maçada da leitura da papelada que entope gavetas, espalha-se pela mesa e parece não ter fim.

No contraponto, sempre manifestou o seu desagrado pelos conchavos políticos, a interminável costura de acordos e alianças, as impertinentes cobranças de ministérios, cargos nas autarquias; as reuniões que varam a madrugada no rodízio de dirigentes de partidos, governadores, secretários, prefeitos, a chusma de parlamentares, com a arrogância dos líderes e a subserviência dos que cavam nomeações de parentes e cupinchas.

Deputado federal por São Paulo, eleito com mais de meio milhão de votos para a Constituinte de 86, pouco compareceu às sessões presididas por Ulysses Guimarães, resmungou queixas pela desatenção pela sua dupla credencial de presidente do PT e recordista de votos e cunhou a histórica sentença, próxima de ser confirmada, da existência de 300 picaretas entre seus ilustres pares.

Solto como canário que escapa da gaiola, vai cuidar em tempo integral de tentar reverter o desgaste do governo que ameaça o sonho da reeleição e lavar a alma no conforto, segurança e rapidez do Aerolula de US$ 56 milhões, para marcar ponto e presença nos palcos do mundo, consolidar a sua liderança continental e o reconhecimento internacional. E correr o país para atender a todos os convites que acenem com povo e microfone para os improvisos recheados das metáforas de sabor popular.

Certamente não se desligará da crise que rola no esgoto dos escândalos. E ameaça invadir a praia, inundar as ruas com o início dos trabalhos da CPI dos Correios, a instalação da CPI do mensalão, as investigações da Corregedoria da Câmara e as muitas frentes que alargam o leque da crescente indignação popular e as denúncias que espalham lama com novos testemunhos, os primeiros documentos, o rumor do desfile de grossas patifarias.

No que for possível, ficará distante da podridão. Acontece que a tática de avestruz mais expõe o traseiro do que esconde a cabeça no buraco da areia. As brechas nas paredes fendidas recomendam duplicar as cautelas antes que o castelo desabe.

A estreante gerente do Planalto, Dilma Rousseff, lustrou a sua posse com o brilho de biografia respeitável: passou por 22 dias de tortura no Doi-Codi e por onde andou deixou fama de enérgica, durona, exigente e com pouca paciência para atender o peditório político. Pisca aviso de encrencas na área em rebuliço e onde o governo exibe preocupante fragilidade. Um primeiro teste desafiará a nova administradora do governo: a reforma do cortiço ministerial. Com a obesidade deformante de 26 ministros e secretários é impossível botar ordem na bagunça e cobrar eficiência na barafunda de encargos superpostos e de evidente inutilidade. O temperamento hesitante do presidente, suas dificuldades em decidir, em magoar os companheiros maltratados por derrotas e acolhidos nos cômodos separados por tabiques nos albergues da Esplanada dos Ministérios sugerem uma caiação para engambelar o eleitor em lugar da derrubada dos excessos.

E a crise espalha-se como tiririca. O senador Antonio Carlos Magalhães prevê que se a CPI apurar para valer, o mensalão expulsará um terço dos 513 deputados. Na mesma trilha, Roberto Jefferson espalhou perfume ao jogar no ventilador a denúncia complementar que o mensalão começou na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, criação do deputado Bispo Rodrigues. Cá para nós, faz sentido.

A nuvem cinzenta da suspeição sombreia os três poderes. E a crise institucional passa de risco na cabeça dos temerários a uma probabilidade pendurada pelo fio fino do testemunho amparado em provas, do documento, da gravação absolutamente indesmentível, da confissão do irmão desafeto ou do motorista que sabe tudo e não suporta a cumplicidade do silêncio.

Por enquanto, temos a amostra da ex-esposa abandonada do deputado com a pilha de cópias de recibos...