Título: Ouvir e debater é bom para a saúde
Autor: Francisco Eduardo Prota e Nilson Roberto de Melo
Fonte: Jornal do Brasil, 23/06/2005, Outras Opiniões, p. A17
O meio médico está apreensivo com a possibilidade de os genéricos de contraceptivos orais chegarem ao mercado brasileiro. É inegável a importância de iniciativas que ampliem o acesso da população a medicamentos, e especialmente a produtos que tenham comprovação de bioequivalência (como é o caso dos genéricos). No entanto, é preciso que as autoridades regulatórias brasileiras considerem as especificidades dos anticoncepcionais antes de adotar uma medida que pode confundir mais do que colaborar. A ampliação das políticas de planejamento familiar é sem dúvida um dos grandes méritos do governo, que assumiu a compra de 100% dos métodos contraceptivos para o SUS e tem defendido publicamente o direito das famílias brasileiras de planejarem o melhor momento para terem filhos.
Quando se fala em oferecer medicamentos genéricos à população, se imagina a possibilidade de ampliar o acesso das pessoas aos remédios. Mas é preciso a garantia de que esses remédios funcionem perfeitamente.
No Brasil existem atualmente cerca de 80 tipos de pílulas anticoncepcionais orais. Agora imagine que todas elas possuem componentes associados em quantidades variáveis e posologias diferentes. Isso significa que temos pílulas em quantidades diversas de etinilestradiol, associadas a diversas quantidades, de diferentes progestagênios, em esquemas posológicos monofásicos, bifásicos ou trifásicos. Além disso, o consumo das pílulas pela mulher pode ser diário contínuo, com pausa de 7 dias, 6 dias ou até de 4 dias.
Não se pode desprezar o fato de que o sucesso da contracepção oral depende em grande parte de a mulher seguir rigorosamente as recomendações de uso. Tantas associações e posologias diferentes podem causar grande confusão: na mesa de prescrição, no balcão da farmácia e, principalmente, na utilização do medicamento pela consumidora.
Vale levantar ainda uma outra questão. No restante do mundo os contraceptivos existem na forma de ¿produto de marca original ou de referência¿, ou na forma do que os americanos chamam de branded generic, que seria o equivalente ao nosso produto similar. Cabe avaliar o porquê desta peculiaridade em relação às pílulas anticoncepcionais, mesmo em países que têm um mercado de genéricos consolidado há anos.
Pela experiência adquirida ao longo do tempo podemos afirmar que muitos colegas médicos teriam dificuldade de prescrever um contraceptivo genérico com associações tão complexas e diferentes entre si. É humanamente impossível lembrar de todas as associações e dosagens disponíveis. O que fazer para esclarecer e ajudar a classe médica em relação a isso? Quem responsabilizar no caso de uma troca inadequada no balcão da farmácia, que poderia resultar numa gravidez indesejada? Seria um erro na prescrição médica ou na substituição do medicamento de referência pelo farmacêutico ou balconista?
É preciso pensar numa forma de discutir e de resolver essas questões, especialmente à luz do conhecimento daqueles que serão diretamente afetados por uma regulamentação de tal grandeza ¿ como é o caso dos farmacêuticos, médicos, comerciantes e consumidoras. Não podemos correr o risco de que uma iniciativa como esta ¿ que tenta minimizar o número de gestações não desejadas e consequentes abortos que matam milhares de mulheres ao ano ¿ esbarre em obstáculos que não tenham sido devidamente avaliados ao longo do caminho.
É preciso ouvir e debater, antes de lançar mão de uma regulamentação que vai impactar a vida de milhões de pessoas em nosso país.