Título: A luta pela conquista da alma
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 23/06/2005, Internacional, p. A9

A mastigação da folha da coca e sua infusão são reconhecidas como elementos benéficos no combate aos efeitos da altitude andina no corpo humano, entre outras coisas. Também ajudam a saciar a fome em uma terra onde o alimento, por inúmeras razões, sempre foi escasso. Para os indígenas peruanos, no entanto, a associação com o narcotráfico, tão ou mais comprovada, não lhes diz respeito.

Desde que os conquistadores espanhóis identificaram a coca como elemento essencial na mágica religiosa e espiritual das tribos, o valor foi subvertido. De bem cultural, na mão dos invasores transformou-se em ferramenta prática para a conquista e a dominação. A submissão passou a ser administrada através da associação com elementos do cristianismo.

A ''erva diabólica'' se ajustou perfeitamente à visão etnocêntrica dos colonizadores europeus. A misteriosa folha aplicada em rituais e oferendas religiosas ao Sol e à Mãe Terra atrapalhava a conversão dos indígenas pagãos. Apesar das diferenças que separam os adversários da planta de ontem e de hoje, as propostas de erradicação desse cultivo atravessaram 4 mil anos no dia a dia martelando as comunidades andinas. O pretexto na era antiga era salvar a alma dos índios.

A transformação da coca em ''patrimônio cultural'', ao atender a anseios que atravessaram gerações, se insere em movimentos de resgate da tradição indígena, um elemento de tensão novo dentro das democracias frágeis de algumas repúblicas andinas. Não à toa, a cerimônia de promulgação contou com um sacerdote que, usando um manto com um condor bordado - símbolo de poder - abençoava fardos de folhas de coca carregados por lhamas.

Na disputa para que essa ''alma'' não se mescle em movimentos transnacionais, o governo peruano usou um termo capaz de equiparar o sonho histórico do Tahuantinsuyo com o rótulo de Estado pária que já foi aplicado na Bolívia (na época do governo de Luiz Garcia Mesa) e no Afeganistão dos talibãs. Segundo a Devida, a agência anti-drogas peruana, ao ceder e expandir as lavouras de Cuzco, a antiga capital do império inca, o governo local abriu caminho para transformar o país todo num ''narcoestado''.

A crítica foi endossada por estados vizinhos, que alertaram Cuzco de que ''estaria brincando com fogo''. O plantio de coca foi declarado ilegal no Peru em 2003. As áreas autorizadas são co-geridas pelo Estado. (M.A.)