Título: Patrimônio polêmico
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 23/06/2005, Internacional, p. A9

Poucas coisas nos Andes são tão valorizadas e combatidas quanto a planta de coca (Erythroxylum coca). Há mais de 4 mil anos, os índios do império Tahuantinsuyo, que incluía Peru, Bolívia, Equador e parte da Argentina, e seus descendentes, cultivam esse arbusto como meio de vida e símbolo da resistência à dominação colonial. E enfrentam, da mesma forma, violenta pressão para eliminar a tradição do cotidiano, em função de uma associação siamesa e inseparável com a cocaína e com o poder do narcotráfico internacional.

A decisão do governador da cidade peruana de Cuzco, Carlos Cuaresma, que promulgou terça-feira lei ampliando a área legal permitida na principal região de cultivo, incendiou o debate. Cuaresma, que é da coalizão do presidente Alejandro Toledo, justificou-se dizendo que a expansão ''botava ordem no caos'', já que o plantio clandestino nunca parou.

- Assino essa lei com grande satisfação em nome das pessoas pobres de Cuzco e digo que voltem às suas montanhas e semeiem essa planta sagrada - declarou Cuaresma a milhares de índios reunidos na praça central da cidade. O texto do decreto considera a planta como ''parte do patrimônio cultural peruano''.

O governador reconheceu que a pressão exercida pelos indígenas (fenômeno crescente nos Andes, haja vista o caso da Bolívia) pesou na decisão. Ontem, diante da repercussão, esboçou uma explicação.

- Houve uma interpretação errada. Só expandi a área permitida em um vale de forma a atender às necessidades básicas. Expliquei isso ao governo em Lima, e ficou tudo certo - justificou.

Pode ser que sim, mas é provável que não. O governo de Toledo foi apanhado no fogo cruzado entre as demandas populares e os informes do programa de combate ao narcotráfico das Nações Unidas. Relatórios indicam que a campanha de erradicação implementada com apoio dos EUA na Colômbia empurrou os traficantes para o Peru. De acordo com o diretor do programa da ONU, Antonio Maria da Costa, à redução de terras colombianas usadas para a coca de 7% registrou-se expansão de 14% no Peru e 17% na Bolívia. Isso antes da lei.

Em Lima, o primeiro-ministro Carlos Ferrero reagiu.

- A medida fará com que o cultivo legal passe dos atuais 9 mil hectares para 36 mil hectares - afirmou antes que a explicação de Cuzco chegasse a Lima. Entre outras medidas, o governo cogita entrar na Justiça para derrubar a lei.

Carlos Cuaresma disse, no entanto, que ''não se responsabilizará pelas conseqüências caso isso aconteça''. E argumentou que a pressão contra os índios, obrigados a substituir a lavoura, pode alimentar uma perigosa demanda por autonomia.