Título: Além do Fato: A Europa e a segurança no Oriente Médio
Autor: Bulent Aras
Fonte: Jornal do Brasil, 19/06/2005, Internacional, p. A14

Muitos fatores contribuíram para o não da França e Holanda à Constituição da União Européia (UE). Um deles ¿ normalmente não mencionado ¿ é o medo que os dois países têm da adesão da Turquia. Mas a proposta já provocou mudanças no país. Para se preparar para integrar a UE, a Ancara se empenhou em promover importantes reformas legais, políticas e econômicas. E os burocratas, políticos e cidadãos turcos se uniram para atender aos critérios que Copenhague estabelece para os candidatos à adesão. Também tiveram que tolerar toda a dor causada pelos programas de ajuste estrutural propostos pelo Fundo Monetário Internacional. O lento processo de adesão há de ser ainda mais doloroso, mas o povo da Turquia está decidido a enfrentar esse desafio. A transformação pela qual a Turquia está passando já pôs um fim ao clima de Guerra Fria do aparato de segurança do Estado, que tomou conta do país por meio século. Também mudou o perfil das políticas interna e externa. Ao modernizar e democratizar sua própria nação, os políticos adquiriram autoconfiança para conduzir, com êxito, negociações na região. O resultado disso é que os líderes turcos agora querem se dedicar a uma diplomacia eficaz no Oriente Médio como um esforço para amenizar eventuais problemas com os vizinhos. O mais importante é o fato de a Turquia estar despontando como um modelo para a parcela da população do Oriente Médio que esteja ansiosa por reformas.

Essa influência não implica em uma relação hegemônica. Pelo contrário, aponta para um caminho alternativo às mudanças e ao modelo econômico que outras nações muçulmanas possam porventura sugerir. A UE está associada à paz, à democracia e ao desenvolvimento econômico, enquanto o Oriente Médio é caracterizado pela instabilidade, pelo autoritarismo e retrocesso econômico. O processo de reforma da Turquia mostra que essas características locais não são um destino inevitável para os países da região. Nesse sentido, a Síria e o Irã encaram positivamente a candidatura. Para ambos, uma Turquia européia é a chance que têm de estreitar suas próprias relações com a UE. O exemplo de Ancara também mostra que o suposto embate entre os conceitos de democracia e segurança ¿ e entre democracia e o Islã ¿ pode ser superado. Outros países muçulmanos costumam se agarrar ao fato de que um turco foi recentemente escolhido, pela primeira vez e por maioria de votos, para ser o secretário-geral da Organização dos Estados Islâmicos.

Outra importante contribuição da Turquia vem através de um eficaz empenho diplomático na região. O governo turco assumiu um papel decisivo como promotor da paz e reviu sua política com relação a várias questões regionais.

O primeiro-ministro, Tayyip Erdogan, por exemplo, quebrou a tradição ao demonstrar uma atitude crítica com relação à política cada vez mais radical de Israel nos territórios ocupados e o fez sem prejudicar as relações diplomáticas com aquele país. Durante uma visita do ministro das Relações Exteriores turco, Abdullah Gul, a Israel, no início de janeiro, houve uma séria discussão sobre o fato de a Turquia assumir o papel de mediador entre Israel e Palestina. O mesmo aconteceu com relação às conversas entre Síria e Israel.

A Turquia não integrou as forças que ocuparam o Iraque sob a liderança dos EUA, é claro. Mas tem feito esforço imenso para mobilizar, na região, o apoio à estabilização do Estado iraquiano. Na verdade, autoridades, políticos e diplomatas turcos têm freqüentemente convocado os países que fazem fronteira com o Iraque a discutir o futuro no Oriente Médio. O Conselho de Segurança da ONU tem tratado esses encontros com toda a seriedade e solicitado maior cooperação na questão do Iraque.

O empenho da Turquia com relação à União Européia cria um clima de confiança no Ocidente com relação a suas iniciativas regionais ¿ ao menos entre os líderes, se não ainda na população. A Turquia também tem obtido êxito ao manter a mesma distância da UE e dos EUA. Por exemplo, o país está mais próximo da UE no que diz respeito ao Iraque e à Palestina, mas, por outro lado, segue uma linha similar à dos EUA no que diz respeito aos Bálcãs e Chipre.

Na história recente, uma variedade de poderes locais ¿ o Irã dos Xás e o Egito dos Nassers ¿ despontaram no Oriente Médio. A chegada da Turquia como uma força regional é diferente na medida em que sua estrutura democrática faz do país um legítimo pacificador. Não apenas mais um ¿brigão¿. Esse é um papel que é necessário e promissor, uma vez que a região precisa de uma força local dinâmica pressionando por transformação e paz. A experiência da Turquia mostra que para se ter segurança na região é preciso estabilidade interna e paz social. Com sorte, esse modelo poderá ser exportado para todo o mundo muçulmano. (Project Syndicate)

*Professor Associado de Relações Internacionais na Universidade Faith de Istambul e consultor político autônomo de temas ligados à Turquia e ao Oriente Médio