Título: Ekklesia-democracia radical
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 24/06/2005, Outras Opiniões, p. A11

Sempre que falamos de democracia, nos reportamos à experiência fundadora dos gregos que, em suas cidades, os cidadãos exerciam o poder de decisão de forma direta consoante o princípio da predominância da maioria. Por mais que a idealizemos, especialmente, depois das teorizações de Platão e Aristóteles, a democracia era, na verdade, muito restrita. As cidades-estado eram pequenas e somente 1/6 da população exercia a democracia, concretamente, os cidadãos livres. As mulheres, os escravos, os artesãos, os estrangeiros e os imigrados eram excluídos. Mas a experiência grega se tornou referência para toda a reflexão política posterior. Entretanto, há uma outra experiência de democracia muito mais radical que a grega e que foi vivida pelas duas primeiras gerações de cristãos. Ela é paradigmática para todo pensamento utópico posterior, embora tenha sido abandonada pelo cristianismo vigente que se organizou numa forma oposta. Ela não ficou referência para o discurso político atual pelo fato de ter sido realizada nos quadros de uma experiência religiosa, pouco ou nada valorizada pelo pensamento laico e laicista. Hoje, a despeito seu nicho religioso, vemos a democracia cristã como qualquer outro fenômeno social. merecendo consideração especialmente quando se busca uma democracia radical, levada a todos os campos da convivência humana, aos movimentos sociais e também à economia, quer dizer, uma democracia sem fim.

A experiência geradora da democracia radical cristã foi a prática de Jesus: absolutamente anti-discriminatória, anti-hierárquica e de fraterndade universal. São Paulo resumiu tudo dizendo: ''Agora já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus'' (Gal 3,28). O resultado foi que escravos, livres, portuários, mercadores, advogados, soldados, independente de sua situação social e de gênero, formavam comunidades fraternais que viviam a koinonia (comunhão), palavra para expressar o comunismo radical de ''colocar tudo em comum'', repartindo os bens materiais ''conforme as necessidades de cada um''. E como louvor se diz que ''não havia pobres entre eles'' (At 2 e 3). Essa democracia era radical mesmo pois as decisões eram tomadas com a participação de toda a comunidade. A lei básica era: ''o que concerne a todos, deve ser decidido por todos''. Isso valia também para a nomeação dos bispos e dos presbíteros.

Chamou-se tal comunidade de ekklesia em grego, ecclesia em latim e ''igreja'' em português. O sentido original de ekklesia não era religioso, mas político: a assembléia popular. Escolheu-se esse nome profano para distinguir a democracia cristã de outras expressões religiosas da época.

Essa memória foi perdida na Igreja Católica. Perguntaram, certa feita, a João Paulo II se a Igreja era uma democracia. Respondeu: não; ela é uma koinonia. Ora koinonia é sinônimo de democracia radical, coisa que seguramente o Papa não pensou. Com efeito, hoje como ela se estrutura, não é koinonia. É uma monarquia absolutista espiritual organizada sob a influência das monarquias do passado. Como tal, fecha as portas à democracia cristã dos primórdios. Ou só a aceita sob a forma inócua da espiritualização. É importante resgatarmos a memória revolucionária escondida na palavra ''Igreja''. Quem sabe, não inspira outro jeito de ser cristão e de ser cidadão?