Título: 'É bom acreditar que Lula é inocente'
Autor: Paulo Celso Pereira e Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 26/06/2005, País, p. A8

Entrevista: HÉLIO JAGUARIBE

Sobraram poucas pedras intactas nos destroços deixados pela crise que consome corações e mentes do governo. Se não na avaliação popular, a tragédia do Planalto é desenhada pelo sociólogo Hélio Jaguaribe. Fundador do PSDB, amigo de Fernando Henrique, admirador de José Serra, mas eleitor de Lula nos dois turnos de 2002, Jaguaribe está decepcionado. Acreditava que o PT seria capaz de abandonar o neoliberalismo. Achava que os petistas tinham um projeto alternativo. Jaguaribe viu um partido transformar-se num governo conservador na economia, incompetente na gestão e equivocado na escolha dos aliados ¿ ao optar pela companhia de ¿partidos malandros¿. Salva-se (um pouco) a figura pessoal de Lula ¿ ¿um homem de bem¿. Honesto, é verdade, mas incapaz de comandar um ministério, garante. Por essa razão, o sociólogo defende uma aliança entre PT e PSDB. Na combinação entre crítica, ironia e bom humor, o professor sugere que, aos tucanos, seja oferecida a gestão ¿técnica¿. A Lula, o posto de ¿rainha da Inglaterra¿. Da língua ferina sai esta análise do mensalão: ¿É conveniente para o Brasil que o presidente apareça como o bobo da história, que não sabia o que acontecia¿. Enquanto planeja seu novo e ambicioso livro ¿ exaustiva pesquisa sobre o cosmos e a vida humana ¿ ataca ministros, Roberto Jefferson e José Dirceu. E defende os tucanos: ¿O PSDB age com prudência branca para evitar o golpe negro de Dirceu¿.

¿ Qual a sua avaliação sobre a crise do governo Lula diante das denúncias do mensalão e dos Correios? ¿ É grave. Embora o deputado Roberto Jefferson esteja longe de ser visto como um político honesto, há uma verossimilhança muito forte nas suas denúncias. Diante disso, vejo uma questão importante. Ele alega que o presidente Lula não sabia de nada. É uma boa mentira. Uma mentira conveniente para o país. É bom para o Brasil que o presidente não seja envolvido. Não há nenhuma vantagem numa crise institucional agora. Então é melhor deixá-lo de fora. Ou o presidente sabia, e então deverá ser punido por crime de responsabilidade, ou, se não sabia, ficará como um bobo na história, que não sabe o que acontece ao lado do seu gabinete. Mas é melhor sair por aí do que entrar na esfera de impeachment. Até porque ele não tem a malícia de um advogado. Sendo um torneiro mecânico, não deve estar envolvido (ri).

¿ E o PT, como sai dessa? ¿ Mal. Ele jogou pesado na carta de resposta. Disse que é tudo mentira. E se a CPI comprovar que há verdade nas denúncias, a posição de Genoino, Delúbio e Silvio Pereira fica insustentável. Diante dessa situação, ou o partido expurga algumas lideranças e salva a moralidade partidária, ou se deixará envolver pelas denúncias. Mas não é uma boa coisa para o Brasil a desmoralização do PT.

¿ Por quê? ¿ O PT prestou um enorme serviço ao país. As pessoas às vezes não se dão conta dessa importância. Graças ao partido, a intensa onda de insatisfação social que se desenvolveu nos últimos anos foi canalizada para a reivindicação democrática, eleitoral. O PT é responsável pela relativa tranqüilidade social no Brasil porque canalizou essa insatisfação popular na direção do voto e não da revolução.

¿ Em que momento o sr. percebeu a mudança do PT? ¿ Isso se torna absolutamente claro a partir do momento em que o presidente Lula foi eleito e assumiu o governo. Na oposição, além desse papel de canalizar a indignação popular na direção da luta democrática, o PT foi um partido de contestação inteiramente irresponsável. No governo FH tomou uma atitude de oposição selvagem, vetando boas iniciativas. Era um sectarismo intolerável. Outro aspecto lamentável é que o partido, uma vez no governo, não elaborou de maneira consistente um projeto alternativo. Mostrou que não tinha projeto. Foram compelidos a aceitar a política neoliberal do FH. A política do PT é tão ou mais neoliberal do que a de FH.

¿ E quando veio a decepção? ¿ A partir do segundo semestre do primeiro ano. Pensei que, enquanto o Palocci estivesse atuando para manter a continuidade e tranqüilizar os mercados doméstico e internacional, uma equipe de retaguarda deveria estar projetando uma política alternativa. Mas não houve nada.

¿ O governo vai mal na gestão? ¿ Muito mal. O que salva é a pessoa do presidente, um homem de bem. Ele não é um impostor, é autêntico. O problema é que tem limitações, que já podem ser vistas claramente: ele não tem capacidade decisória e nenhuma habilidade de gestão. Um líder sindical é um reivindicador, não um proponente de alternativas. E ele continua nessa função apenas de crítica. Quando as coisas não andam bem, em vez de tomar decisões, ele faz um discurso. Isso é grave. O governo está paralisado, exceto dois ou três ministérios. Essa coisa de mais de 30 ministérios é uma bobagem. Dispersa a capacidade de lidar com a equipe. As coisas ficam fora de controle. Por outro lado, a maior parte dos ministros é incompetente ou não dispõe de recursos.

¿ E as políticas sociais? ¿ Muito mal também. Tudo o que é social é péssimo. Tirando as bolsas, que funcionam bem e já vinham desde o governo anterior, tudo vai mal. Atualmente o Bolsa-Família atende cerca de um terço dos indigentes brasileiros. Não é pouco. Agora, esse ministro da Saúde (Humberto Costa) é uma coisa deplorável. É um pobre homem. Imagine que ele inundou de petistas todos os órgãos da Saúde. Eu perguntei: ¿Mas o senhor só nomeia petistas?¿ Ele respondeu: ¿O senhor queria que eu nomeasse um inimigo?¿ Ou seja, quem não é do PT é inimigo? Um sujeito desse era para ser demitido.

¿ O sr. desenha uma tragédia e, no entanto, o nível de aceitação popular tem padrões similares ao primeiro mandato de FH, que tinha o Real por trás. ¿ É verdade. Mas credito isso à extraordinária capacidade de comunicação do presidente Lula e não às estatísticas. É um homem com enorme carisma, sério, honesto, decente. A inteligência, combinada com sua decência, transmite uma boa impressão.

¿ Essa comunicação faltou a FH? ¿ Esse é um homem extraordinário, o mais competente presidente que passou pela República. Mas não tinha comunicação popular. Tinha uma comunicação intelectual. Eu gostava muito dele. O que ele dizia eu compreendia, enquanto o povo compreende o Lula. Mas, cá pra nós, as metáforas são um pouco exageradas. Foi lamentável o presidente dizer, numa hora de crise, que estava triste porque o Corinthians perdeu. O Brasil explodindo, e ele diz que está muito triste não pelo discurso do Jefferson, mas porque o Corinthians perdeu! É uma infantilidade.

¿ E no combate à corrupção, o sr. acha que o governo Lula está indo bem? ¿ O presidente Lula é um homem absolutamente contrário à corrupção. Mas é ineficaz. Por outro lado, não está tendo uma visão suficientemente radical da necessidade de uma reforma política. A tarefa mais importante, muito mais do que a reorientação da economia, é a pronta adoção de uma reforma do sistema político. O atual é inadequado e gerador de corrupção. Outro dia o ministro Márcio Thomaz Bastos disse: ¿Vamos fazer uma reforma possível¿. Bobagem. Que possível, nada! Tem que fazer a reforma necessária. Existe um câncer, que é um sistema político absolutamente inadequado.

¿ Como a reforma teria dado um jeito nos últimos episódios de corrupção denunciados? ¿ Nosso sistema eleitoral dispersa o voto. A regulação partidária é zero. Um presidente assume condenado a ter um número insuficiente de parlamentares no Congresso. Não pode governar. Temos um presidencialismo congressualista. O poder não está no Executivo, mas no Congresso. O presidente é obrigado a gerir via sistema de agregação. No governo FH, um partido de centro-esquerda, o PSDB, aliou-se a um partido de centro-direita, o PFL. Eram diferentes, porém decentes. E o que fez o Lula? Em vez de fazer aliança com o PSDB, unindo dois partidos social-democratas, procurou cooptar pequenos partidos que estão atrás de negociatas públicas: PTB, PP e PL. Esses partidos deram o apoio parlamentar ao preço de uma corrupção total. Sem programas, nem projetos. Fundamentados em verbas e cargos. Uma reforma política imporia regras que reduziriam esses custos. É o caminho para corrigir a dificuldade de construir maioria parlamentar. O erro do Lula foi fazer alianças com partidos malandros. Isso estimulou a corrupção.

¿ Lula e o PT erraram na reação? ¿ O deputado Jefferson não tem provas, mas está munido de suficientes indicações para permitir que um inquérito apure as denúncias. Se apurar, ótimo. Se verificar que as denúncias são infundadas, se aquilo tudo for imaginação, tem que levar o Jefferson para o hospício (ri). Mas o PT apostou na hipótese de que não se vai apurar. Essa hipótese está baseada na suposição de que os apoiadores de Lula vão ter capacidade de se infiltrar nas comissões para neutralizar o trabalho da investigação. Isso desmoralizará o governo e o país. Se ocorrer, o governo sofrerá com a reação da opinião pública, nacional e internacional. Será vergonhoso.

¿ Governo nenhum gosta de CPI. FH fugiu delas como o diabo foge da cruz. ¿ É verdade. Nenhum governo gosta de CPI. Mas as CPIs propostas com base em coisas fictícias, como boa parte do que o PT quis inventar contra o governo FH, eram muito sectárias, feitas para perturbar o governo. Agora temos uma CPI que decorre de um clamor nacional. Ou se leva muita gente para a cadeia ou o Jefferson para o hospício.

¿ O professor Wanderley Guilherme dos Santos falou de um golpismo branco que os tucanos não hesitariam em apoiar. Estariam querendo paralisar o governo. Como o sr. analisa essa tese? ¿ Esse é o argumento de defesa das pessoas inteligentes do PT.

¿ Mas Wanderley não é do PT. ¿ Eu sei, mas esse é o argumento das pessoas inteligentes do PT. Um argumento completamente falso. Em contraste com o que ocorreu no governo anterior, a oposição do PSDB está agindo com grande moderação, com espírito de responsabilidade. Tem agido com cautela, exatamente o oposto do golpe branco. Pelo contrário, é uma prudência branca para evitar o golpe negro que está aí, promovido pelo Dirceu.

¿ O PSDB não está atuando para a paralisia do governo, de olho em 2006? ¿ O PSDB está atuando para apurar as coisas. O governo está paralisado por si e decorre da incapacidade do presidente Lula. A inteligência dele não supre a falta de informação. O ex-ministro Cristovam Buarque, meu amigo pessoal, uma vez me disse que em um ano nunca teve um despacho com o presidente. Nenhuma vez o presidente perguntou-lhe o que estava acontecendo na sua pasta. Ele me disse: ¿Eu só me encontrava com ele nas solenidades¿. Um presidente assim não tem controle das coisas. Isso é grave. No governo FH não havia corrupção assim. Havia a falta de um projeto social. Foi um governo neoliberal. Eu dizia isso para o Fernando (Henrique Cardoso) e ele ficava louco da vida: ¿Eu não sou neoliberal!¿ (ri).

¿ Como imagina o fim do mandato? ¿ Depende de como ele agirá agora. Se insistir em manter alguns nomes do PT, pagará um preço alto. Mas tem condições de fazer um excelente governo. Primeira tarefa: fazer um governo técnico e mobilizar a opinião pública para pressionar o Congresso pela reforma política. Segunda solução: encontrar uma modalidade de aliança PT-PSDB.

¿ Mas isso nem petistas nem tucanos querem. ¿ É lamentável que não queiram. Há um conflito de lideranças, e um conflito assim é solúvel. Minha idéia é que os dois partidos conduzissem à reeleição do Lula e estabelecessem um primeiro-ministro tucano. Esse primeiro-ministro governaria tecnicamente o país, e ao Lula caberia a tarefa que já cumpre hoje: discursar (ri). Ele faz bem esse papel de rainha da Inglaterra. Chame um excelente administrador do PSDB e faça um projeto social-democrata para sairmos do neoliberalismo.

¿ Quem seria esse primeiro-ministro? ¿ Minha escolha seria o (José) Serra. É o que tem mais capacidade operacional, técnica. O Fernando Henrique dizia isso muito bem: o Serra é um péssimo candidato, mas seria um ótimo presidente (ri).