Título: Impasse no processo de paz
Autor: Iara Leite
Fonte: Jornal do Brasil, 26/06/2005, Internacional, p. A12

A Lei de Justiça e Paz, que estabelece os marcos jurídicos para a desmobilização dos grupos paramilitares criados na década de 80 ¿ notadamente as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) ¿, foi aprovada pelo Congresso colombiano durante a semana. O processo de desmobilização faz parte da lista de promessas feitas pelo presidente Alvaro Uribe, em campanha eleitoral, e só precisa de sua sanção para entrar em vigor. A lei, contudo, gerou uma série de críticas por parte de grupos de direitos humanos e organizações internacionais, sendo a mais significativa aquela que diz respeito ao tratamento do paramilitarismo como delito político, o que favorece a impunidade, inclusive de narcotraficantes que aderiram às fileiras da AUC. Para além das polêmicas levantadas quanto à questão da impunidade, a desmobilização tem impactos profundos nos rumos da pacificação da sociedade colombiana. Um processo de paz genuíno e efetivo implica transformações profundas na estrutura política, econômica, social e étnica, as quais transcendem, portanto, o cessar-fogo e a deposição de armas. Somente com essas transformações podem ser equacionadas as causas originais de determinado conflito. Mas quais são elas? Façamos um breve histórico dos processos sociais e políticos do país.

Entre o fim das guerras de independência e o início do século XX, a Colômbia vivenciou nove guerras civis nacionais, 14 locais, duas com o Equador e três quarteladas. Adicione-se a isto o fato de que a exploração dos recursos naturais do país (hidrocarbonetos, mineração e até mesmo plantações de banana) foi realizada, quase em sua totalidade, por empresas americanas. Depois de um período relativamente pacífico (1902-1948), o assassinato do líder liberal Jorge Eliécer Gaitán, supostamente cometido pelo governo conservador, fez com que partidários do liberalismo e do comunismo se sentissem ameaçados e se escondessem nas montanhas, onde formaram organizações campesinas que lutavam pela terra.

A partir daí, começou uma ofensiva militar contra tais grupos (iniciando um período conhecido como ¿La Violencia¿), que durou até 1958, com a criação da Frente Nacional, um regime político baseado na alternância entre os partidos Conservador e Liberal. Na década de 60, porém, o surgimento de duas guerrilhas, o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), apontava para a ineficiência da pacificação institucional e para persistência de sérios problemas estruturais, com destaque para a crise do minifúndio e a distribuição desigual de terras.

Embora tenha sido iniciado um importante processo de paz pelo governo conservador de Belisario Betancur (1982-1986), a oligarquia agrária colombiana, que na época era formada por 4% da população com controle sobre 67% das terras produtivas, se opôs ao diálogo, dando início ao financiamento a grupos paramilitares de direita. Apesar de terem sido criados para ações defensivas contra os movimentos da guerrilha esquerdista, contemplando a princípio não mais que 1.000 homens, os grupos paramilitares incorporaram uma lógica própria baseada em estratégias ofensivas, agrupando-se sob liderança única e formando as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC).

Essa organização passou a contar também com o apoio financeiro de negociadores de gado, empresários urbanos e principalmente do narcotráfico (em troca de proteção a plantações ilícitas), e a ela é atribuída a maior parte dos massacres ocorridos entre 1997 e 2001 (cerca de 70).

Assim, a origem dos grupos paramilitares remete ao surgimento das guerrilhas de esquerda, guerrilhas estas que, por sua vez, emergiram da insatisfação com a desigualdade social colombiana. Um processo de paz só seria efetivo, portanto, caso fossem contempladas as demandas que se encontram na raiz do conflito.

No entanto, a posição uribista com relação às Farc vem sendo de enfrentamento direto no âmbito do Plano Patriota, corroborado pela insistência do presidente em definir a situação interna colombiana como uma ameaça terrorista. A relutância de Uribe em reconhecer que há na Colômbia um conflito armado não-internacional esvazia a necessidade de respeito às normas do direito humanitário, dando carta branca ao Exército para uma resolução estritamente militar do problema.

Mesmo que as guerrilhas também sejam (e aceitem ser) contempladas pela Lei de Justiça e Paz, a pacificação interna ficará comprometida enquanto não houver: (1) uma ampla transformação da estrutura sócio-econômica colombiana; (2) a erradicação de outras formas de abusos de direitos humanos e da violência criminal praticados pelos demais atores violentos, particularmente aqueles ligados ao narcotráfico; e (3) a reconciliação com a população civil atingida pelos 40 anos de conflito.

Isso envolve, por certo, uma alteração profunda das percepções das elites colombianas. Mas há dúvidas de que ocorra no curto ou médio prazo, dada a convergência com a posição oficial americana que, a despeito de inúmeras críticas à Lei de Justiça e Paz, já aprovou na Câmara, por 44 votos a zero, o emprego de fundos para apoiar o processo de desmobilização. Resta saber, agora, sob quais condições se dará liberação dos recursos.