Título: Um julgamento incômodo
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Fonte: Jornal do Brasil, 28/06/2005, Internacional, p. A9
ISLAMABAD - Mukhtaran Mai, de 32 anos, foi violada por uma gangue, em 2002, por ordem de um conselho tradicional numa região rural do Paquistão. O caso, que ficou internacionalmente conhecido e assumiu contornos políticos, começou a ser julgado ontem pelo Supremo Tribunal de Justiça. Mai foi estuprada como punição pelo envolvimento de seu irmão - que na ocasião tinha apenas 12 anos - com uma mulher de um poderoso clã, ato considerado crime de honra em tribos do país. O governo de Islamabad vinha tentando encobrir o caso.
Seis acusados foram inicialmente condenados à pena de morte, mas cinco deles inocentados em segunda instância - apesar de permanecerem detidos por ordem do governo local. A vítima apelou da sentença.
- Espero que eles recebam a mesma punição dada inicialmente - disse a mulher, que viajou 560 km de Meerwala, o vilarejo onde mora, para participar da audiência em Islamabad.
Os cinco homens originalmente considerados culpados foram inocentados por falta de provas, segundo o parecer da Corte do estado de Punjab. Já o sexto acusado teve a pena de morte convertida em prisão perpétua.
No primeiro julgamento, outros oito participantes tinham sido inocentados e agora também terão a sentença revista pelo STJ.
Mai se tornou internacionalmente conhecida por falar abertamente do estupro, que revela as formas brutais de justiça tribal que ainda prevalecem em partes do Paquistão, o que levou o governo a tentar silenciá-la.
No início do mês, o presidente Pervez Musharraf - que vem tentando projetar o Paquistão como uma nação muçulmana moderada e progressista - impediu a mulher de visitar os Estados Unidos, onde iria divulgar o caso a convite de uma ONG. O presidente só mudou de posição depois de protestos de Washington. De acordo com um porta-voz, a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, chegou inclusive a levantar a questão com o ministro de Relações Exteriores paquistanês, Khursheed Mehmood Kasuri, na semana passada.
Em recente viagem à Nova Zelândia, Musharraf confirmou ter pessoalmente ordenado que Mai fosse impedida de viajar porque grupos estrangeiros queriam que ela ''falasse mal do Paquistão'' sobre ''a terrível situação'' das mulheres. Segundo ele, essa é uma visão injusta do país.
- Este caso horrendo ocorreu em uma parte remota do Paquistão e não é algo que acontece em todos os lugares, todos os dias - justificou Musharraf. - Não somos piores do que qualquer outro país em desenvolvimento.
Ontem, Mai afirmou que o governou já devolveu seu passaporte, mas que ela ainda não decidiu se fará a viagem porque agora pretende acompanhar o julgamento.
O caso teve início em junho de 2002, depois que o conselho de anciãos do vilarejo de Meerwala ordenou o estupro como forma de punição. No entanto, Mai afirma que a acusação foi criada para encobrir um caso de assédio sexual contra seu irmão por homens do clã Mastoi, do qual a mulher que o menino supostamente teria se envolvido faz parte.
Segundo Aitzaz Ahsan, advogado da vítima, há ''provas substanciais'' que corroboram o crime.
- Não queremos prolongar o problema. Rezamos para que o Supremo Tribunal de Justiça resolva a questão o quanto antes para que o caso não vá para o Shariat (o tribunal islâmico) - disse Ahsan.
Desde o ataque, Mai se tornou uma proeminente ativista dos direitos da mulher. Analfabeta, contribuiu para a construção de uma escola para meninas em seu vilarejo, basicamente com a ajuda de doações, a maioria delas dos EUA.
Antes de partir para Islamabad no domingo, ela reiterou as queixas de que vem sendo vigiada pela polícia, o que as autoridades alegam ser para sua proteção.
- As pessoas livres são assim? Não tenho permissão para falar com ninguém - disse a repórteres no aeroporto, rodeada de policiais.