Título: A necessária quebra de patentes
Autor: Alexandre Grangeiro
Fonte: Jornal do Brasil, 28/06/2005, Outras Opiniões, p. A11
A tomada de consciência de que nosso tempo é finito revoluciona. Na política não é diferente e, por vezes, em meio à crise, decisões por muito postergadas, acabam se concretizando. É o caso do anuncio da quebra de patentes do medicamento Kaletra. O ato, talvez um dos últimos do ministro Humberto Costa, atende a dois objetivos. O primeiro, mais nobre, a preocupação com 170 mil pessoas que precisam dos medicamentos de aids para viver. O segundo, a tentativa de tirar a marca negativa de uma gestão que desestruturou o Programa de Aids brasileiro. Mas, deixando de lado a dubiedade da decisão, a quebra da patente é digna de aplauso.
Por todos os ângulos só há pontos positivos. Entre os 16 medicamentos do coquetel para aids, o Kaletra é um dos mais utilizados. Com a produção do genérico o Ministério da Saúde economizará R$ 130 milhões por ano. Dinheiro suficiente para duplicar o número de ONG que trabalham com aids e, ao mesmo tempo, aumentar em 25% a quantidade de preservativos distribuídos à população.
Internacionalmente, reforça a luta dos países em desenvolvimento para tratar 6 milhões de pessoas que vivem com aids e sem remédios por causa dos preços imorais cobrados pela indústria farmacêutica. E nessa briga o Brasil tem um papel importante. Desde que começamos a negociar com os laboratórios e a produzir genéricos, o preço dos remédios despencou e, hoje, internacionalmente, custam 10 vezes menos do que nos anos 90. Com a decisão, o Brasil também rompe um tabu e abre o caminho para outros países implementarem os acordos internacionais que permitem a quebra de patentes e a produção de genéricos.
E há mais pontos positivos. O Brasil tem a chance de incorporar tecnologia, incentivar novas pesquisas e capacitar profissionais para desenvolver novos medicamentos. É falsa a idéia de que a indústria de genérico simplesmente copia fórmulas. O desenvolvimento da droga requer estudos aprofundados e muitas vezes o ''genérico'' fica melhor que o original. Como é o caso do DDI, um dos medicamentos já produzidos pelo laboratório estatal Far-Manguinhos.
Apesar disso, o Brasil deverá ser ameaçado pelo governo americano e pelos laboratórios internacionais. Mas sanções comerciais representam somente a defesa do lucro e não a preocupação com a vida e com o desenvolvimento científico. Ao contrário do que argumenta a indústria, as patentes não são essenciais para a elaboração de novos remédios, que sempre foram desenvolvidos sem títulos de propriedade. Patentes para medicamentos são recentes na história da humanidade e só foram adotadas depois que a indústria farmacêutica dos países ricos estava consolidada. Na Suíça, por exemplo, elas datam de 1977. Antes, os medicamentos eram considerados fundamentais para a vida, um bem social acima dos interesses comerciais. Portanto, a adoção indiscriminada da patente nos países em desenvolvimento é medida protecionista para indústria dos ricos.
Há ainda duas preocupações. A primeira é a qualidade do medicamento que será produzido no Brasil. Se a lei for cumprida, não há problema. O laboratório Abbott é obrigado a repassar todas as informações para a fabricação da droga, treinar os profissionais brasileiros e supervisionar a produção. É ele o responsável pela qualidade do genérico que vai ser produzido. Caso o laboratório não cumpra a lei, o Brasil deve anular a patente e não pagar os royalties à empresa americana.
Também é preciso vigiar para que a quebra de patentes, de fato, ocorra. Depois de anos negociando preços, o governo ainda concedeu dez dias para a Abbott reduzir o valor cobrado pelo remédio. É diplomático, mas o prazo deixa a licença compulsória para ser feita em meio às interrogações da reforma ministerial. Caso ela não aconteça, o ato fundamental para a saúde pública não terá passado de uma cena política.