Título: Politicamente o quê?
Autor: Frei Betto
Fonte: Jornal do Brasil, 29/06/2005, Outras Opiniões, p. A11
Há expressões que entram e saem de moda. Meu pai dizia "que sujeito pau" quando se referia a um chato. Nos anos 70, o Pasquim prestava, entre seus inestimáveis serviços, o de manter a gíria atualizada. Hoje, é brega dizer "vá plantar batatas!" ou "vá amolar o boi". Quase ninguém mais chama varanda de alpendre, casaco de abrigo e táxi de carro de praça. A impaciência e a perda de certos valores favorecem os palavrões. Não é raro escutar crianças dirigirem-se aos pais e professores em termos impublicáveis. Talvez nem seja questão de desrespeito, mas de ignorância mesmo, de quem é prisioneiro de um universo vocabular exíguo. Tão diminuto que não fui capaz de captar quando minha sobrinha reagiu à advertência da mãe: "E o Quico?" Pensei que se tratasse de algum amigo dela. Nada disso. Viciada em linguagem telegráfica, graças à virtual exigência de que na Internet a linguagem deve ser tão apressada quanto os recursos eletrônicos, ela queria dizer, segundo tradução da mãe, "E o que é que eu tenho a ver com isso?"
Na mídia, a moda é destacar os que são considerados "politicamente corretos". Até o governo federal ensaiou uma cartilha nesse sentido, logo detonada por quem se recusa a ver a linguagem aprisionada. Mas quem se atreve a ser politicamente "incorreto" e professar que o MST é o mais importante movimento social do Brasil e não há futuro para a humanidade fora do socialismo? Mas ninguém se espanta quando o sujeito fala do mercado como se fosse Deus e se fixa nos seus índices como minha avó mirava os santos de sua devoção.
Quando ouço dizer que alguém é "politicamente correto", lembro daqueles que o autor do Apocalipse rejeita por não serem "nem frios nem quentes" (3, 15) e, portanto, merecem ser vomitados pelo Espírito. Aliás, em matéria de politicamente isso ou aquilo a diversidade supera a de marcas de cachaça.
Andam em voga os "politicamente monomaníacos", que querem o poder a qualquer custo, ainda que através de subornos e mensalões. Os "politicamente safardanas" ostentam uma sinuosa trajetória administrativa de malversação e apadrinhamento de corruptos e, no entanto, exibem um sorriso angelical.
"Politicamente mofatrão" é o sujeito que enche a boca de democracia e ética, mas não move uma palha para derrubar a antidemocracia econômica que situa o Brasil na desonrosa posição de segunda nação socialmente mais desigual do mundo, atrás de Serra Leoa. Aqui, os 10% mais ricos - cerca de 18 milhões de pessoas - embolsam 42% da riqueza nacional. Na outra ponta, 18 milhões de empobrecidos sobrevivem dividindo entre si 1% da renda nacional. Segundo o Ipea, 1% da população possui riqueza igual à renda de 50% da população mais pobre.
Proliferam por aí os "politicamente hipalgésicos", que se locupletam com o inflexível ajuste fiscal, faturando alto na seletiva esbórnia do capital financeiro, e ainda ousam dizer em público que a crise social brasileira não é grave. Na esquerda, multiplicam-se os "politicamente dimórficos", que se envergonham tanto de aplaudir a economia de mercado quanto de defender o socialismo. São como aquele mineiro que prefere ficar em cima do muro e ainda ousa dizer que é para ver melhor os dois lados¿
Vizinhos deles são os "politicamente palinódicos", que hoje consideram a reforma de estruturas um mero conceito de astrofísica e medem a democracia antes pela rotatividade das urnas que pela barriga do povo. Em sua obtusidade são companheiros dos "politicamente acarraçados", que não acreditam na rotação da Terra, na transformação da história e são tão aferrados ao futuro de seus sonhos que confundem o presente com o passado.
Caberia elogiar os "politicamente insubornáveis", os "politicamente probos", os "politicamente terçadores" em favor dos excluídos, etc. Mas já seria politicamente promissor de tivéssemos no Brasil mais mulheres e homens públicos menos voltados à própria adjetivação e mais interessados nas substantivas demandas sociais. Estas sim, são politicamente urgentes.