Título: As boas surpresas dentro do óbvio
Autor: Candido Mendes
Fonte: Jornal do Brasil, 29/06/2005, Outras opiniões, p. A11

O desenrolar dos últimos dias, com a saída de José Dirceu e o novo desempenho que se talhou Roberto Jefferson, aponta, talvez, a uma quebra, no desfecho de sempre e sua receita, na ópera bufa das CPIs brasileiras. Dirceu veio à planície, mais que para aparar a estocada contra o Presidente, no empenho da volta às bases, para o fortalecimento de sua iniciativa política à vista do segundo mandato. Não saiu para o escanteio, nem como o perigo daninho, como se a sobrevivência do governo entrasse na contagem regressiva dos puros entre os dedos do sistema. A manifestação maciça de apoio ao ex-chefe da Casa Civil deu um teor todo, o contrário da nostalgia, como se começasse a arregimentação política para o novo tempo do PT no Planalto.

O lance da saída abre a ribalta e o enredo do que se pretende com o inquérito, a bem da moralidade pública. Mas é a ponta da meada da desestabilização de um governo que ameaça a volta do país aos seus donos de sempre, e ao conhecimento da mudança qualitativa das expectativas sociais - e de como se definem os seus apoios e repúdios eleitorais. O fato básico é que a popularidade do presidente e as projeções sobre a reeleição mantêm-se basicamente indenes às oscilações das Comissões de Inquérito em cascata agora, e do que seja a verdadeira agenda de prioridades a que se credenciará o governo em novo pleito.

O mais significativo também é que tal avanço independe do jogo de credibilidades às novas denúncias. Por força, nelas chegou ao máximo da competência tribunícia a toada de Roberto Jefferson, em apuro oratório de que hoje desertou toda rotina e a expectativa do Congresso. O depoimento galvanizou a opinião pública, a seu início, não sem que o pior do script do rastaquerismo parlamentar desqualificasse os líderes do PTB e do PL, antes de que os microfones do Congresso fossem desligados, a bem do pudor da Casa. Ou da salvação do que resta da imagem do Congresso, visto hoje como a mais desmoralizada das instituições políticas brasileiras.

Uma opinião pública que acredita no que Jefferson disse - e, por força, da sua cadência oratória - é também a que imuniza hoje os rumos do futuro do governo do desfecho da CPI, que dificilmente escapará ao anedotário, e à água de barrela das iniciativas antecedentes. Serve o incidente para, de fato, transformar o rito e o processo das Comissões de Inquérito na tarefa de conquista da ribalta, ainda do Legislativo diante da opinião pública, pertinaz nas inconclusões nesta tarefa quase judiciária a que recusa, entretanto e, sempre, a presença efetiva, e para valer, da Polícia Federal. O Congresso que quer dar vez ao que diga uma oposição - mesmo que tenha perdido o controle da CPI - só vê crescer a manobra da volta obsoleta ao ímpeto de desestabilização institucional. Trata-se de virar a página, de vez, no quadro da seriedade das nossas instituições políticas, e do que efetivamente possa esperar do governo um país que derrubou a nação dos cartolas em 2002 e, sobretudo, o seu suposto, de que controla a opinião pública. A ida de Dirceu à planície responde a esse sentimento mais fundo, em que o PT precisa virar a página do Brasil arcaico, que ainda está aí, na clássica contraposição entre o moralismo do status quo e, de fato, a emergência desta nova consciência cidadã ampla, que passou pela diferença da eleição de Lula. Não tolera mais o Brasil de fundo que um Congresso em franca desatualização com a nossa demanda cívica, se considere como dono do que pensa a sociedade, cada vez mais distante dos seus ditos porta-vozes.

O acerto em se dar, como Dilma Roussef, uma marca tarefeira à Casa Civil, no desemperro de projetos básicos como o das parcerias, só reforça a verdadeira fome de iniciativas por que esperam seus eleitores. A iminente desmoralização das novas CPIs implica também - a se querer a virada de página - o desmascaramento à opinião pública deste último álibi do situacionismo. Vamos às CPIs até certo ponto, como é vão e ledo o propósito de uma reforma política, que não reformule o direito ao exercício feudal do mandato, inutilizando as expectativas de coerência ideológica para exercê-lo, ou de disciplina de quadros e de votos, durante seu exercício.

A largueza do gesto de Dirceu evitou a primeira trampa de um oposicionismo obsoleto. Mas o PT que quer uma reeleição consagradora de Lula impõe já, ou nunca, a agenda ao que fazer dos próximos meses. A sua chegada ao poder nada tem com a dos situacionismos de todo o sempre, nem o velho moralismo udenóide pode contaminar o campo majoritário.

*Presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais (Unesco), Membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.