Título: Delegado, para que precisa?
Autor: Orlando Zaccone
Fonte: Jornal do Brasil, 01/07/2005, Rio, p. A13
Em tempos de capitalismo tardio, pensar num mundo sem polícia é sinônimo de utopia delirante. A sociedade alternativa não aconteceu e a história nos levou a conhecer diferentes desdobramentos da sociedade vigilante. Cada vez mais o clamor público por maior eficiência da instituição policial se faz presente, até porque outros aparelhos de controle social, como família, escola e religião encontram-se enfraquecidos numa sociedade voltada quase que exclusivamente para o consumo. Mas se existe uma unanimidade em torno da importância da polícia no exercício do controle coativo, uma vez que até na expressão ¿chama o ladrão¿ encontra-se implícito que alguém tem que realizar este papel, os louros da atividade policial acabam sendo usufruídos por muitos, menos por aqueles que desempenham esta atividade. É neste contexto que devemos analisar as reivindicações salariais da polícia, que tem o ônus de resolver diferentes emergências, muitas das quais retratam a verdadeira ¿criminalização da pobreza¿, expressa no controle de flanelinhas, camelôs e população de rua. O bônus é colhido politicamente por aqueles que pretendem resolver problemas sociais com ação policial. Neste contexto, não só no Rio, mas em todo o mundo, a segurança pública tem sido o ponto mais importante nos debates políticos.
No caso do delegado de polícia, o desprestígio é ainda agravado pelo fato de a sociedade não ter conhecimento da real dimensão das suas atribuições, definidas na Constituição Federal brasileira, bem como pelo interesse de alguns grupos em subverter esta mesma ordem constitucional, modificando o modelo jurídico que fundamenta a existência do cargo, sem que a sociedade participe deste debate.
Podemos acrescentar ainda a presença em nosso país de duas polícias (Civil e Militar), construídas através da lógica da necessidade do Estado e não da sociedade, num emaranhado que acaba por dificultar ainda mais a compreensão daquilo que representa a função do delegado de polícia no Estado Democrático. Qualquer pessoa pode acionar a qualquer hora um delegado. Ao contrário da grande maioria das repartições públicas, as delegacias nunca fecham as portas. Na prática, longe de representar a força do Estado, o delegado de polícia está pronto para atender diferentes demandas emergentes, que podem passar por um menor de rua, um cachorro enlouquecido, um cambista no Maracanã, ou um local de homicídio. Mas qual o sentido de um delegado de polícia, além da citada função de ¿síndico do caos¿? Em recente trabalho intitulado Sistemas de investigação preliminar no processo penal, o advogado e doutor em direito Aury Lopes Jr. aponta os fundamentos que legitimam a existência de uma investigação preliminar ao processo penal nos Estados Democráticos. Gostaria de destacar dois: freio aos excessos da perseguição policial ou mesmo do Ministério Público e evitar acusações infundadas.
Não precisamos tecer comentários jurídicos mais profundos para entender que o poder de polícia deve sofrer controles. O primeiro destes é exercido pelo próprio delegado de polícia, que em nosso sistema processual acusatório tem não só a função de investigar crimes, distinta daquela que cabe ao promotor e ao juiz, bem como de exercer controle imediato ao exercício do poder de polícia. Não são poucas as vezes em que o cidadão exige ser revistado pessoalmente perante a autoridade policial e, antes mesmo de procurar um advogado, muitos exigem a presença do delegado de polícia na resolução de diferentes conflitos.
Um dos maiores processualistas nacionais, o professor Fernando da Costa Tourinho Filho, chega a afirmar, com razão, que o delegado de polícia relaxa a prisão ilegal no momento em que libera pessoas detidas ilegalmente. Além do mais, em nosso sistema de investigação preliminar, o delegado de polícia preside o inquérito, que, com todas as suas deficiências é a garantia em nosso sistema jurídico que ninguém será acusado em juízo de forma infundada, evitando abusos por parte do poder estatal. Podemos exemplificar com a recente prisão do diretor de florestas do Ibama, por representação do Ministério Público federal, sem que no inquérito se vislumbrasse indício de crime do funcionário.
O que se pretende no movimento de reivindicação salarial é tão somente repor perdas, uma vez que o comando constitucional que garante reajustes anuais não ocorre há mais de cinco anos, além de buscar um equilíbrio entre as demais carreiras jurídicas, uma vez que nada justifica a desproporção encontrada entre os rendimentos dos delegados de polícia em comparação aos dos juízes e promotores de Justiça. Aliás, este tem sido também um dos argumentos utilizados por procuradores do estado e defensores públicos.