Título: Tudo começa no financiamento
Autor: Karla Correia
Fonte: Jornal do Brasil, 03/07/2005, País, p. A3

A falta de transparência no financiamento de campanhas alimenta a corrupção do processo eleitoral. Essa noção se amplia, dentro do governo, do Congresso e do próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como saldo da generalização de práticas ilícitas no financiamento de campanhas, exposta em meio à crise política. - É na falta de clareza nas relações entre doadores e candidatos que está a razão para que o financiamento privado seja mal visto pela sociedade. Essa representação é justa, e é importante que fique clara. Os eleitores precisam saber com propriedade em quem estão votando - adverte o ex-presidente do TSE e presidente do Conselho de Ética da República, Fernando Neves.

O desvio da interpretação sobre o financiamento privado fica claro em atitudes adotadas por parcela significativa da sociedade. De 3,5 mil empresários ouvidos em pesquisa da ONG Transparência Brasil sobre corrupção, 52,7 % citaram a contribuição financeira em campanhas eleitorais como caminho certeiro para se obter vantagens na administração pública.

A generalização das práticas ilícitas no financiamento des campanhas eleitorais ganhou ontem novas evidências. Reportagem da revista Época mostraque um empresário investigado por fraudes nos Correios foi o terceiro maior doador da campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. O empresário Antonio Augusto Morato Leite Filho doou R$ 800 mil para a campanha de Lula no fim de outubro daquele ano, dias antes do segundo turno. As doações, uma de R$ 500 mil e outra de R$ 300 mil, foram feitas, segundo a revista, por meio da empresa Promodal Logística e Transportes, de propriedade de Antonio Augusto.

Até o fim de 2003, após a eleição de Lula, a Promodal fez com os Correios contratos que lhe renderam R$ 104 milhões. Segundo a revista, estes contratos estão sob suspeita e serão investigados pelo Ministério Público.

O relacionamento controverso entre capital privado e política surge com contornos mais definidos em levantamento conduzido pelo gabinete do deputado Alexandre Cardoso (PSB-RJ), que traça um perfil do financiamento privado de campanhas.

Na radiografia revelada pelo estudo, os setores da economia mais dependentes de regulamentação governamental ou de contratos com o governo aparecem como os principais contribuidores em campanhas políticas. Candidatos à Presidência da República, por exemplo, recebem mais recursos do setor financeiro e da indústria pesada, como os de petroquímica e aço. Os interesses na definição dos marcos regulatórios setoriais, concessão de subsídios, obras de grandes dimensões e na condução da política econômica explicam a preferência.

Instituições financeiras dão prioridade a candidatos ao Senado, Casa que supervisiona o Banco Central e autoriza empréstimos para entidades do setor público. As empreiteiras se voltam para as campanhas de governadores, detentores dos recursos públicos para obras.

- Não é o financiamento em si, mas a obscuridade com que as relações são travadas que fazem desse um sistema viciado. Ao conseguir impor uma agenda aos candidatos beneficiados, o capital está enviesando a representação social, o objetivo final de uma eleição - analisa o cientista político Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), endossando a posição de Neves.

- Mesmo em casos de contribuições perfeitamente legais, fica a sensação da ''compra'' do candidato. O que só alimenta o ciclo vicioso, já que diante da desconfiança pública, as empresas se dispõem cada vez menos a aparecer como doadoras. Isso acaba nos esquemas de corrupção eleitoral e, em casos mais graves, numa relação fluida entre política e crime organizado - diz Nicolau.

Na outra ponta, há extrema dependência das campanhas eleitorais em relação ao capital privado. Em média, 80% das doações financeiras que um candidato a qualquer cargo eletivo recebe durante a campanha, no Brasil, vêm de pessoas jurídicas. O alto custo do processo é um fator de peso. Na última eleição, os quatro principais candidatos na disputa presidencial declararam gastos da ordem de R$ 60 milhões.

- É o dinheiro investido na campanha, e não o peso político do candidato, que define o resultado da eleição. Essa situação tem determinado a queda da qualificação dos congressistas e se espalhado pelas assembléias de todo o país - avalia Alexandre Cardoso, presidente da comissão que analisa a reforma política na Câmara.

Além de reduzir a influência direta dos interesses de setores econômicos nas grandes pautas do Congresso, o deputado acredita que a medida contribuiria para reduzir a ocorrência do caixa 2 nas campanhas, prática corriqueira no meio político, conforme evidenciado nas denúncias do deputado Roberto Jefferson.

- Não se trata de uma panacéia, mas a reforma política certamente facilitaria a fiscalização do processo eleitoral. Os tribunais regionais não estão aparelhados para fazer esse trabalho - acredita Jairo Nicolau.

Um exemplo da dificuldade envolvida no processo pode ser observada nos dados das últimas eleições municipais. Cerca de R$ 10 bilhões foram gastos pelos 15.746 candidatos a prefeito e 346.419 postulantes a vereador que emitiram, em média, 30 notas fiscais em serviços contratados durante a campanha. O tribunal de São Paulo, por exemplo, conta com 20 funcionários para analisar os processos.