Título: Reforma pública da política
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 03/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

As denúncias mais recentes recolocaram o tema da reforma política na pauta. Se as urgências podem ter um caráter positivo, elas podem ter também condicionamentos negativos diante de uma conjuntura política próxima das eleições e em meio a uma grande crise governamental.

Fala-se na necessidade de afirmar a fidelidade partidária, para dar maior estabilidade ao sistema político. A preocupação se volta, com razão, para a necessidade de permanência no partido por pelo menos dois anos. É um passo adiante, mas o que muda se os partidos seguem tão descaracterizados ideologicamente? De que forma garantir definições dos partidos, que obedeçam o programa proposto aos eleitores?

Pelo menos em relação aos governos, a novidade da Constituição da Venezuela, com o referendo confirmatório no meio do mandato dos governantes, é uma forma importante de controle dos eleitores em relação aos que eles elegeram. Depois de metade do mandato, volta aos eleitores o poder soberano, para decidir se os governantes estão sendo fiéis ao mandato que receberam, se seu desempenho corresponde à delegação que receberam dos eleitores.

Sem essa possibilidade, o mandato entregue aos eleitos se torna um cheque em branco, com o qual eles podem fazer o que bem entendem. Em relação aos parlamentares, seria necessário introduzir o voto distrital, como condição da possibilidade de algo similar: a possibilidade de revogar o mandato do representante que não corresponde ao que propôs aos eleitores ou que desobedeça as posições que se havia proposto defender.

A porcentagem de votação dos partidos para que estes possam ter financiamento público deve corresponder a uma real existência a nível nacional, não como forma de discriminação, mas para impedir a proliferação de siglas que se tornam partidos de aluguel e para garantir o enraizamento social mínimo dos partidos.

Quanto à lista fechada, ela supõe um perfil ideológico claro dos partidos, impedindo alianças em que o voto em um candidato definido ideologicamente possa ser canalizado por alguém com perfil totalmente diferente. Esta seria uma fraude com o voto. Além disso, será necessário controlar a filiação partidária, para que convenções realmente democráticas, representativas e legítimas definam a ordem dos candidatos nas listas.

Mas nunca teremos democracia política, sem alguma forma de orçamento participativo, em que a cidadania organizada decida a aplicação dos recursos públicos. Cargos nomeados pelos governantes - como o do presidente do Banco Central - ou outras formas de existência de uma tecnocracia sem controle da cidadania - conspurcam a vontade popular, decidindo questões tão importantes como a liberação de recursos para políticas sociais ou a taxa de juros, de forma autônoma. A democratização do Conselho Monetário Nacional deveria fazer parte - junto com os itens mencionados acima - de uma reforma política com espírito público.

Da mesma forma, a falta de representatividade da Câmara de Deputados - o Severino não é a cara do povo brasileiro -, tem que ser questionada. O Senado tem a função de garantir a representação igual dos estados. Não podemos ter uma Câmara em que os estados com menor quantidade de eleitores ficam super representados. Esta deformação é a que permite que um partido como o PFL tenha uma representação muito acima do total de seus votos, por ter suas bases principais de apoio nos estados do nordeste. Mas essa reforma não será feita pela Câmara, pela sua própria composição deformada.

Para questões transcendentais como essa, a lei que tramita no congresso, apresentada pela OAB, que garante o direito da cidadania se expressar mediante referendos e plebiscitos, é essencial. Um Estado e governos sem participação popular e controle da cidadania, se autonomiza, governa por encima dos interesses majoritários e aprofunda o fosso entre o poder e a massa da população.

Com reformas como essas, poderemos avançar para que deixemos de ser uma democracia política assentada sobre a pior ditadura social do mundo, governada por elites que representam a minoria da população e trabalham para sua perpetuação no poder.