Título: Crise de representação e reforma política
Autor: Roberto Amaral
Fonte: Jornal do Brasil, 03/07/2005, Outras Opiniões, p. A12
Para além da crise política na qual todos estamos enredados, vivemos grave crise institucional, alimentada pelo crescente distanciamento entre cidadania e política, voto e representação. Uma de suas manifestações é o desencanto do cidadão com respeito a suas instituições, nas quais não mais confia, com as quais não mais se identifica, porque nelas não pode identificar o instrumento adequado da solução de seus problemas, dos problemas individuais e coletivos, dos problemas da sociedade e do país. A reiterada dissociação entre a vontade eleitoral e a ação de seus representantes eleitos rompe o nexo entre o cidadão e o mandatário, cada vez mais distanciado de seu próprio eleitorado, seja pelos interesses que passa a representar após a eleição, seja pela conduta muitas vezes questionável que passa a adotar no exercício do mandato.
Esta crise da representação, que tem um fundo ético, é uma das conseqüências da anarquia partidária que desorganiza a vontade eleitoral. Daí o voto por interesse que desqualifica o mandato e anula qualquer tentativa de projeto que vise ao interesse do país. Em outras palavras, afirmamos que o modelo brasileiro de democracia representativa está exaurido. Essa crise não é de agora, mas agora está mais aguda na visão da opinião pública, escandalizada pelo que lê.
Se não há modelo de democracia representativa sem sistema de partidos, é inquestionável a falência da ordem partidária, constituída, no geral, por entidades sem vida orgânica, sem fidelidade programática, sem princípios ideológicos diferenciadores, de sorte que a cada dia mais se difunde junto à cidadania a certeza de que todos são iguais, os partidos, os políticos, as lideranças, ou seja, ninguém é confiável. Daí a falência da política.
Ocorre que não existem, como fatos isolados, representação e institucionalidade. Uma alimenta a outra, como vasos comunicantes. Dito de outra forma: os vícios de uma, inevitavelmente vão contaminar o conjunto.
O epicentro da crise está no Congresso. A democracia convive com bons e maus governantes (não sobreviveu a Collor?), mas não sobrevive à desmoralização das instituições. A crise do Congresso não deriva apenas da crise de costumes, mas dos próprios vícios que caracterizam a crise da representação.
O Congresso e os partidos, surpreendidos pela crise por eles mesmo cevada, descobrem, na reforma política, que sempre rejeitaram, a tábua de salvação para todos os males da República. E dizem que esses males serão purgados porque as campanhas eleitorais doravante serão financiadas pelo Erário, porque será exigida a fidelidade partidária, porque será implantado o sistema de votação por listas, de origem um instrumento de democracia indireta. Porque tudo isso fortalecerá os partidos. Não é verdade: não se salvam partidos com leis. A salvação está neles: na conduta política de cada um. A questão não é de forma, mas de essência.
Uma reforma política, profunda, é necessária, mas ela não está completa na proposta aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal. Nos termos atuais, nada obstante alguns avanços, ela simplesmente consagra o statu quo e bloqueia as mudanças que a sociedade deseja fazer nas eleições de 2006, renovando o Parlamento. Quando, na organização das listas partidárias, a lei impõe a ordem dos eleitos nas últimas eleições, a reforma está blindando os mandatos dos atuais deputados e salvando muitos deles da cassação eleitoral. Quando o financiamento público das campanhas -- primeiro passo para evitar a dependência do eleitos aos interesses de seus financiaores-- obedece à proporcionalidade da atual composição das bancadas, a legislação está simplesmente congelando o quadro partidário de hoje, que é sabidamente insatisfatório. A reforma política de que precisamos haverá mais do que tudo de aprofundar a intervenção da sociedade no processo eleitoral, construindo as bases de uma futura democracia participativa. E qualquer reforma ficará capenga se não compreender as estruturas partidárias, dóceis ao mandonismo e ao controle de grupos, espaço favorável para os escândalos a que a sociedade, atônita, assiste diariamente.
Com essas considerações queremos afirmar que não iremos a lugar nenhum se não enfrentarmos a crise política na sua raiz: a crise da representação.
É preciso construir mecanismos que assegurem transparência da vida parlamentar - como a introdução do mandato imperativo e do recall ou revogação de mandato parlamentar (já existente nos EUA e na Venezuela) sempre que o titular perder a confiança de seu eleitorado - e maior participação social no processo legislativo, facilitando a proposição e tramitação de projetos de iniciativa popular, o referendo como condição de vigência para toda emenda constitucional ou iniciativa que diga respeito à federação. É imperiosa a revisão da funesta emenda permissiva da reeleição dos mandatos executivos, bem como a revogação do instituto das medidas provisórias, que transforma o Executivo no principal poder legiferante da República e reduz as atividades de um Congresso pouco cioso da defesa de suas atribuições. Eis algumas dentre muitas medidas tendentes a restabelecer a legitimidade dos mandatos.
*Ex-ministro da Ciência e Tecnologia