Título: Dom Quixote e o mensalão
Autor: Gustavo Krause
Fonte: Jornal do Brasil, 06/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

Em 2005, Sartre completaria cem anos, se vivo fosse; a obra revolucionária do gênio Einstein comemora um século de transformações na física; e o romance de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, tido pelos grandes críticos como ''o romance dos romances'', celebra quatrocentos anos de encantamento e inspiração artística.

De fato, os clássicos não envelhecem. ''Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual'', ensina Italo Calvino. É o caso de Dom Quixote.

O romance foi concebido na prisão e o seu sofrido autor que se descrevia banguela (''seis dentes nem miúdos, nem graúdos, pois não tem mais que seis''), maneta (''perdeu a mão esquerda arcabuzada na batalha de Lepanto''), corcunda (''o corpo entre dois extremos, nem grande, nem pequeno, a cor viva mais branca do que morena, as costas algum tanto encurvadas''), rosto aquilino e nariz curvo, jamais poderia imaginar que, quatro séculos depois, teria a criação do ''Cavaleiro de Triste Figura'', à sua imagem e semelhança, equiparada por Harold Bloom ao ''único par de Dante e Shakespeare no cânone ocidental''.

Nem todas, mas muitas obras clássicas se popularizam e, por isto, se imortalizam. É o caso de Dom Quixote.

Tornam-se populares por conta da mensagem universal que legam à posteridade; por conta dos arquétipos que constroem através dos personagens criados; por conta, enfim, dos termos incorporados aos idiomas, utilizados largamente, sem que haja necessidade da leitura dos livros.

''Quixotesco'' virou um adjetivo de muitos sinônimos: impulsivo, sonhador, romântico, nobre, irrealista, utópico, ''um homem que antepõe seus ideais à sua conveniência e trabalha em defesa de causas justas, sem consegui-lo''. (Talvez, a expressão que rivalize com ''quixotesco'' seja ''maquiavélico'', as duas usadas com ambivalência, só que a injustiça com o grande moralista Maquiavel, o maior psicólogo dos homens do poder e autor da maior obra de auto-ajuda para candidatos a estadistas, já produzida, é enorme: qualquer político corrupto ou, no mínimo esperto, recebe o adjetivo ''maquiavélico'' que deveria estar reservado aos grandes homens de Estado).

Mas deixemos em paz o sábio florentino e voltemos ao fidalgo de La Mancha.

Fico a imaginar, Dom Quixote, herói e anti-herói, cômico e trágico, nobre e patético, visionário e delirante, rebelde abraçado às causas da loucura, acolitado pelo pragmático Sancho Pança (que só pensava no ministério, perdão, no governo da ilha prometida), montado em Rocinante, protegido pelo bacielmo, inebriado de amor por Dulcinéia Del Toboso, desembarcando no Brasil do mensalão, segundo os Correios, Brasília, Praça dos Três Poderes, em posição de combate, arremetendo sua fúria contra a arquitetura contemporânea dos modernos moinhos de vento.

O engenhoso fidalgo, redivivo brasileiro, trajado de verde e amarelo, cravou as esporas em Rocinante, pôs a lança em riste e partiu contra a horda de inimigos, honrando os preceitos da destemida cavalaria. ''Meu Amo e Senhor - gritou, aflito, Sancho, o fiel escudeiro - não são gigantes, não são moinhos, não são carneiros; são castelos ministeriais, são palácios presidenciais, infestados de ratos, vampiros, hienas, lobistas, carregando malas de dinheiro, gravadores'' e, mal acabou o alerta, um araponga, infiltrado no meio da gente endiabrada, tascou uma microcâmara na cabeça do guerreiro do que, ao jazer no vasto gramado, banhado em sangue, deu por finda a peleja de estréia.

Pobre Dom Quixote! A Espanha de seu tempo, marcada pela corrupção; corroída pela peste; erguida sobre o privilégio de poucos e infortúnio de órfãos, viúvas, pobres e desvalidos, seria uma pálida caricatura diante da imundície das patranhas, do cinismo, da venalidade, dos crimes cometidos contra a esperança dos brasileiros em nome da mercadoria podre que atende pelo nome pomposo de governabilidade.

Mas, Dom Quixote não desistiu. Teimoso e idealista, o Cavaleiro Andante persistiu na luta. A epopéia dos grandes ideais frente a um mundo hostil haveria de ser reescrita, sob seu comando, por um exército de anônimos cidadãos que, dignamente, constrói o cotidiano e a perenidade das nações. Basta para tão grande feito que as chamadas instituições democráticas dêem um empurrãozinho.

Se o empurrãozinho for dado, o nosso herói não morrerá como no romance de Cervantes, abatido pela melancolia dos heroísmos fracassados. Deles, não se perde o valor das boas ações que nasce da ''fineza de mi negócio'', expressão com que Quixote traduzia sua missão para justificar a própria loucura.