Título: Lula
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 07/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

Conheci Lula na segunda metade dos anos 1970, quando ele era ainda Luiz Inácio da Silva, liderança operária maior do sindicalismo brasileiro, que renascia depois da longa noite aberta com o Golpe militar de 1964. Dotado de uma intuição preciosa, Lula sabia, como ninguém, representar a classe trabalhadora, num período em que havia um claro vácuo de representação do trabalho no Brasil, dada a intensa repressão que se abateu junto aos partidos de esquerda e ao sindicalismo político do pré-64.

Sua vivacidade e força em muito suplantavam suas dificuldades. Era impactante presenciar a liderança de Lula no estádio de Vila Euclides, onde os metalúrgicos em greve faziam suas majestosas assembléias. Foi exatamente nesse período singular de nossas lutas sociais, entre 1978 e 1980 que Lula consolidou sua enorme liderança popular.

Lembro, também, que no início de 1981, participei de uma longa entrevista com o líder sindical, realizada em sua casa modesta em São Bernardo do Campo. Num momento de pausa da entrevista e da gravação, e sob o impacto das respostas de Lula, sempre instigantes, lhe perguntei: ''Lula, você já leu alguma literatura socialista?''

Sua resposta foi de bate-pronto: ''Não preciso ler, por que aprendi a mais-valia na fábrica''. Eu lhe respondi algo assim: ''Certamente, sua experiência na fábrica é essencial na sua vida e consciência, mas um dia essa teoria lhe poderá fazer falta...''

Quase 25 anos depois, o Lula de hoje é outro. Ao longo dos anos 90, depois do excepcional embate de 1989, sua primeira candidatura à Presidência, Lula foi pouco a pouco tornando-se um político profissional, distanciando-se de sua origem operária, convertendo num ''homem de classe média'', como confessa em Entreatos, o belíssimo documentário de João Moreira Salles. Lula sonhava ser o exemplo mais bem sucedido do nosso self made man: fora um operário de origem rural que, depois do interregno metalúrgico, caminhava a passos largos para tornar-se presidente da República.

Nesse período, Lula sempre teve o PT em suas mãos. A cada disputa acirrada entre as tendências, ele sempre surgia, ao final, como um tertius, capaz de somar até os contrários. E assim fez ao longo de toda a militância no PT, o que consolidou o lulismo, dentro e fora do PT.

A falta de solidez teórica e política era suprida pela enorme capacidade que Lula sempre demonstrou de captar, de assimilar, ao seu modo original, o que lhe falavam aqueles a quem ele mais ouvia e respeitava. É, assim, a trajetória de Lula saltou do ''sindicalista apolítico'' para o ''sindicalista político'', ainda ao final dos anos 70. Nos primeiros anos do PT, tornou-se dirigente partidário sob ''influência socialista'', bem como um candidato com fala ''radical', que perdurou ao longo da década de 80.

Entre as eleições de 1994 e 1998, foi aproximando-se do candidato-equilibrista, nem tão radical, nem tão assimilado pelo sistema, até converter-se no ''Lulinha, Paz e Amor'', já sob influxo da embalagem publicitária de Duda Mendonça.

De lá para cá, a vacuidade tornou-se quase completa. Preenchidas pelas metáforas, com as jaboticabas, o futebol, o machismo explícito, os traseiros para explicar o sucumbir de sua política de juros etc. Dois episódios são exemplo da monumental alienação política que se abateu sobre o outrora líder operário: quando disse poucas semanas atrás que ''nunca'' havia ficado tão nervoso quanto no jogo entre Brasil e Argentina, quando a crise se avolumava e começava a virar tempestade e, no último sábado, em pleno terremoto político, só equivalente ao período que antecedeu o impeachment de Collor, quando foi comemorar no ''Arraia do Torto'' os inimagináveis desvios de rota de seu governo e partido.

Em pouco mais de 30 anos, Lula migrou do mundo do trabalho industrial para subir a rampa do Planalto. Lá, no passado, ficou estancada sua viva espontaneidade. Antes dessa crise estonteante, imaginava-se como o Messias que vinha do povo e seria capaz de ''ensinar'' e converter as ''elites''. Não conseguiu perceber que foi tranqüilamente tragado por elas. E que hoje depende do PSDB e dos bancos para permanecer onde está.