Título: Crentes convertem Khmer Vermelho
Autor: Jason Burke
Fonte: Jornal do Brasil, 25/10/2004, Internacional, p. A-9
O Khmer Vermelho ficou conhecido por seguir uma linha radical do comunismo, matando quase dois milhões de pessoas em sua trajetória política que levou o Camboja à Idade Média. Agora, a organização tem uma nova fé: o cristianismo evangélico.
Centenas de ex-combatentes do Khmer foram batizados no último ano. O principal reduto, Pailin (Sudeste), já tem quatro igrejas, todas com pastores e uma congregação crescente. Pelo menos 2 mil seguidores de Pol Pot, o sanguinário ex-líder que morreu há seis anos, agora se dizem servos de Deus.
Muitos dos novos convertidos estão envolvidos nas batalhas sangrentas e nos programas de deslocamento forçado que criaram os famosos ''Campos da Morte''. Entre 1975 e 1979 o Khmer Vermelho se esforçou para erradicar a religião, pondo abaixo a maior catedral do país, matou dezenas de clérigos muçulmanos e transformou templos budistas em pocilgas. Segundo um pastor, 70% dos convertidos em Pailin são do Khmer. Para muitos, a religião é esperança de salvação.
- Fiz coisas ruins quando era soldado. Não sei quantos matei, seguia ordens e pensávamos que era a coisa certa - diz Thao Tanh, de 52 anos. - Hoje a Bíblia me livra do peso dos pecados que cometi.
O Khmer Vermelho tem estado no centro das atenções de grupos religiosos americanos. Lee Samith, um assessor do governador de Pailin, era oficial de inteligência do grupo e foi um dos primeiros convertidos. Ele recebe visitas freqüentes de um missionário americano ligado a uma igreja do Colorado. Com ele assiste filmes sobre a vida de Cristo.
- Abri meu coração e Jesus entrou - diz Lee, 36 anos. Como 90% dos cambojanos, ele era budista. Agora está envolvido com a Igreja Presbiteriana da Nova Vida, cujas paredes de madeira têm motivos natalinos e cartazes coloridos com cenas da vida de Cristo. Lee ainda tem resquícios de sua antiga ideologia.
- Pol Pot tinha boas idéias para o Camboja e para todas as pessoas - diz. - Só os estrangeiros falavam sobre genocídio. Mortes por conflitos de classe sempre foram inevitáveis.
Depois de expulso de Phnom Penh, a capital cambojana, em 1979, pelos vietnamitas, o Khmer Vermelho se retirou para as montanhas. Pailin, que fica numa região rica em pedras preciosas, sempre funcionou como base econômica. É um lugar agreste, cheio de bordéis de bambu e bares com bebidas adulteradas e comida ruim. É alcançado por 50 km de estrada tão ruins que mesmo jipes 4x4 levam mais de quatro horas para superá-los. As densas florestas do entorno, cenários de batalhas em mais de 30 anos, são pesadamente minadas.
O Khmer hoje está próximo do poder. O governador de Pailin é membro do partido do primeiro-ministro, a despeito de ter sido guarda-costas de Pol Pot. Seu vice, Kuoet Sothea, também ex-assessor do genocida, diz que muitos dos seus camaradas ''sentem-se arrependidos pelo que fizeram. Unidade nacional e solidariedade são os lemas atuais''.
''Duch'' - Kang Kek Ieu - que dirigiu o complexo em Phnom Penh onde, estima-se 16 mil pessoas morreram - é outro convertido à nova fé que oferece mais do que conforto espiritual. Depois de anos de negociação com as Nações Unidas, o governo cambojano relutantemente concordou em levar a julgamento os responsáveis pelo genocídio dos anos 70.
Vários líderes do Khmer vivem em vilas de Pailin, cercadas por fazendas e explorando madeira nas florestas e gemas dos garimpos. Apesar de muitos terem idade avançada, hoje temem terminar seus dias na prisão. Acham que a piedade cristã poderia ajudar a mitigar as sentenças que possam receber.
Kun Lung, 49 anos, começou sua carreira como guarda-costas de um comandante e se tornou o mais conhecido propagandista do grupo, responsável pelos selvagens discursos na infame estação oficial. Foi ''batizado'' recentemente e agora organiza a Pailin Radio, na qual fala do ''trabalho de Deus'' em dois programas diários.
Entretanto, apesar de serem os comandantes que enfrentarão o júri, os missionários (custeados por evangélicos da América, Coréia do Sul e Cingapura), acharam o maior número de fiéis entre os oficiais de nível médio e baixo. A maior parte vive como trabalhadores rurais nas propriedades dos seus chefes políticos. Moram em casas pobres e trabalham 15 horas por dia. Sem ajuda do governo ou de ONGs humanitárias, não contam com amenidades para tornar a vida menos pesada. Há uma só clínica na região, para atender a 30 mil pessoas. Os missionários, por sua vez, construíram um orfanato e várias escolas para a leitura da Bíblia.