Título: A ética da conveniência
Autor: Ubiratan Iorio
Fonte: Jornal do Brasil, 25/10/2004, Outras Opiniões, p. A-11

O episódio bíblico da Torre de Babel - em que ninguém se entendia e o que parecia ser, na verdade, não era, enquanto que o que se julgava não ser, na realidade, era -, quando comparado aos chamados arranjos políticos com vistas ao segundo turno das eleições municipais a que o país vem, estarrecido, presenciando, parece ter a organização, a hierarquia, a disciplina, o recato e a santidade de um convento de frades descalços.

Se é verdade que todos conhecemos muito bem o real significado de frases do tipo ''não discuta isto ou aquilo, pois é uma escolha política'', também é bastante claro que, quando se trata de compor arranjos com vistas a ganhar votos e vencer eleições, alguns políticos ignoram claramente que até o mito de que ''decisão política não se discute'' tem um limite, determinado pela importância maior ou menor que se dá aos valores éticos consagrados pela tradição. Tal fronteira entre o tolerável e o intolerável pode até ser, embora erradamente, aceita por alguns como ''flexível'', em um mundo em que o relativismo moral tem sido a tônica, a terça, a dominante e a sétima do acorde social, em que palavra de honra é coisa de um passado remoto e fidelidade a compromisso algo descartável como um kleenex.

A atitude de certos candidatos, trazendo para seus palanques ex-inimigos e elogiando as mães de antigos adversários - as mesmas a quem antes maldosamente atribuíam o exercício da mais antiga das profissões -, nada tem de nova, nem entre nós, nem, tampouco, no exterior. São coisas da vida e da política e, algumas vezes, embora não justificáveis moralmente, até mesmo compreensíveis, quando, por exemplo, formam-se alianças em torno de programas ou de doutrinas, com vistas a impedir que idéias opostas sejam vitoriosas nas urnas. Mas, se, como antes, os acordos agora firmados nada têm de programáticos ou de doutrinários, há algo novo debaixo dos fúlgidos raios de nosso sol: é que o seu protagonista principal vem sendo o Partido dos Trabalhadores que, desde 1980, quando foi fundado, fez questão de se autoproclamar defensor perpétuo da ética na política e inimigo público número um de quaisquer tipos de cambalachos, ou, usando a sua bizarra linguagem, de ''maracutaias''.

Deixando de lado dezenas de outros exemplos de graves deslizes éticos, tanto por parte de membros do PT, como de políticos de outros partidos, divulgados extensivamente pela imprensa, tomemos o da campanha para o segundo turno na cidade de São Paulo: dois candidatos - ambos de esquerda - que passaram para o segundo turno disputam avidamente o apoio de um terceiro, derrotado no primeiro turno, mas cujo apoio formal julgam importante para a vitória, especialmente para a da atual prefeita, pois até as pedras da Muralha da China sabem que dificilmente alguém que sempre votou em Maluf irá votar no PT, preferindo anular o seu voto ou, se tiver um bom estômago - atributo que se aperfeiçoa a cada pleito - digitar o número do tucano...

Pois não é que o ''homem que faz'' declara o seu apoio formal à petista e, sorridente, é recebido de braços abertos pelos que passaram anos acusando-o de mil vícios? Bandeiras vermelhas saudando Paulo Maluf - a Paulicéia virou Babel? Quando a moral é relativizada, surge um supermercado de sistemas éticos à escolha do freguês, mas, neste caso, é evidente que o limite tolerável, abaixo do qual as decisões políticas não se discutem, é flagrantemente ultrapassado, escandalizando até mesmo o eleitor acostumado às orgias da política. O PT , que levou, há dois anos, 52 milhões de esperançosos, ludibriados pelo marketing, a acreditarem em mudanças éticas para melhor, adere às práticas que tanto condenou no passado.

A ética válida, agora, é a da conveniência, a do poder pelo poder. E com a maior desfaçatez.