Título: Haitianos fazem estágio em Goiás
Autor: Gisele Teixeira
Fonte: Jornal do Brasil, 25/10/2004, País, p. A5
Em Pirenópolis, grupo de educadores e engenheiros aprende lições de sobrevivência utilizando recursos da natureza
Eles fazem parte da liderança campesina de uma nação devastada por sucessivas ditaduras. São bem articulados e possuem curso superior em uma terra em que 47,1% da população é formada por analfabetos. Por isso, têm consciência de que o Brasil pode oferecer mais do que tropas militares para a reconstrução de seu país.
- Queremos informação - diz o engenheiro agrônomo Accene Joachim, de 35 anos, líder de um grupo de dez haitianos que está, desde o início do mês, no Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado (IPEC), localizado em Pirenópolis, a 160 quilômetros de Brasília.
No coração do Centro-Oeste, eles estão aprendendo técnicas sustentáveis de agricultura e arquitetura. São soluções baratas - como aproveitamento de água da chuva, reciclagem de efluentes, cisternas de ferrocimento e construção de casas com materiais alternativos - que podem ser implementadas, e fazer a diferença no atual cenário do Haiti, o país mais pobre das Américas.
- Não podemos pensar em processos tradicionais. Não há dinheiro para isso - acrescenta Joachim.
Hoje, a população do Haiti é de 7,5 milhões de pessoas, sendo que 80% delas vivem abaixo da linha de pobreza, com renda per capita de menos de US$ 1 por dia. Segundo uma avaliação feita pelo Banco Mundial, o Haiti precisa de investimentos urgentes de US$ 1,37 bilhão. Mas, enquanto o dinheiro não chega, os camponeses trabalham. Este é o terceiro grupo de haitianos que chega ao IPEC para aprender noções de permacultura. A meta é criar no Caribe Ocidental um centro de difusão dessas tecnologias, o que será implementado, em 2005, com a ajuda dos brasileiros.
Estes profissionais são líderes importantes em seu país de origem, integrantes do Movimento Campesino de Papay, um dos mais fortes do Haiti, com 200 mil membros. A sede é em Hinche, na região central do país. A organização foi criada em 1973, durante o governo do ditador Jean-Claude ''Baby Doc'' Duvalier, e trabalha, como explica Joachim, para ajudar o povo a tomar consciência da realidade do país e a entender que apenas organizados poderão provocar uma transformação.
- Não há luta isolada - diz Joachim, responsável também por traduzir os ensinamentos ministrados em português para a língua creole.
A luta, no momento, se concentra principalmente na aquisição de conhecimentos. Entre um soco e outro no superadobe - sistema de construção com terra crua compactada em sacos de polipropileno - os haitianos contam que o país possui hoje apenas uma universidade federal. Por isso, o movimento se organiza para financiar os estudos de seus associados. Pelo menos 30 pessoas estão em universidades de Cuba e da República Dominicana no momento.
Marie-Lucie Adolph, de 36 anos, é educadora popular e uma das duas únicas mulheres do grupo. Entre suas tarefas está a de transmitir noções de higiene às comunidades rurais. No Haiti, ela será responsável por difundir, por exemplo, os sanitários compostáveis secos, uma solução barata para lidar com fezes humanas onde não há água ou de tratamento de esgoto. A tecnologia dispensa o uso de descarga e tubulações e necessita apenas de matéria orgânica seca (serragem). Além disso, o resultado é uma produção de húmus de alta qualidade para uso agrícola.
- Hoje, buracos no chão são o que nós temos de mais parecido com o que vocês chamam de banheiro - diz Joachim.
A possibilidade de captação da água da chuva também chamou a atenção do engenheiro agrônomo Vernat Suprême, de 32 anos. Ele diz que os haitianos bebem água de poços e rios contaminados.
- A água da chuva está sendo desperdiçada, pois é pura, sem nenhuma contaminação. E o que é melhor, de graça - avalia.
Também engenheiro agrônomo Augustin Sylvestre ficou apaixonado pelo design da ecovila, planejada levando em conta a topografia e os recursos naturais.
- Nunca tinha visto nada igual - admite.
A visita dos haitianos ao Brasil está sendo financiada pela organização americana Pond Foundation e a pela Permacultura América Latina (PAL). De Pirenópolis, o grupo segue agora para Manaus (AM) e em seguida para Bagé (RS), localidades onde existem outros dois centros de permacultura. A idéia é aprender técnicas adaptáveis a diferentes ecossistemas. No caso do Norte, o grupo vai conhecer sistemas de manejo de florestas. Um dos desafios do Haiti é recuperar a vegetação original do país, hoje reduzida a apenas 2%, o que tem causado alterações no regime de chuvas e redução da fauna e flora.
Serão mais dois meses de viagem. A saudade, que aumenta principalmente à noite, é amenizada pelos sons dos tambores, que soam ao ritmo da compa, música tradicional haitiana. Junto com o desejo de transformar uma nação, a equipe trouxe para o Brasil instrumentos como violões, banjos e maracas. É nessa hora que a auto-estima do povo, tão massacrada nos últimos anos, se revela. E os brasileiros entendem porque o Haiti, há 200 anos, tornou-se a primeira república negra no mundo e a segunda nação independente das Américas.