Título: Flip debate questões sociais
Autor: Aline Erthal, Paulo Celso Pereira e Vivian Rangel
Fonte: Jornal do Brasil, 10/07/2005, Rio, p. A24

Se na sexta-feira a tônica dos debates na Flip recaiu sobre a crise política brasileira, ontem foram as questões sociais, como violência e discriminação, o tema central das mesas. Logo o primeiro encontro do dia, ''Ritmo, poesia, política'' provocou reações calorosas e diversas. Conduziram a discussão o rapper MV Bill, o sociólogo Luiz Eduardo Soares e o cineasta e cronista Arnaldo Jabor. E o que se viu foram, pela primeira vez, vaias e aplausos simultâneos em Paraty.

Nas lembranças da infância e adolescência de MV Bill, sobraram críticas para todos os lados. Nascido e criado na Cidade de Deus, o rapper expôs o racismo como ferida aberta da sociedade brasileira. Num discurso apaixonado, chegou às lágrimas ao comentar que o negro pobre é de tal forma excluído que nem quando morre encontra seu espaço na sociedade.

- Vi um negro morrer em Belém do Pará e isso não é notícia. Enquanto em Ipanema tudo alcança grande repercussão. Uma morte é mais importante do que a outra - emocionou-se o rapper, ovacionado pela platéia de pé.

A carência de identidade dos excluídos foi respaldada por Luiz Eduardo Soares, co-autor com o rapper do livro Cabeça de Porco, que aborda problemas sociais como o tráfico e o desamparo das comunidades carentes. Abrindo o discurso com índices expressivos de violência - são assassinadas, por ano, 45 mil pessoas no país -, o sociólogo ironizou:

- Nem a morte se distribui de forma democrática no Brasil - disse.

A partir da idéia de que aqui o genocídio tem cor, classe, gênero e endereço, Luiz Eduardo mergulhou na questão da invisibilidade social dos meninos da favela, qualificando o assalto a mão armada como um grito impotente e desesperado por reconhecimento e acolhimento. O caminho para se resolver o problema, segundo ele, é ouvir e colher as histórias para que elas ganhem sentido na memória coletiva.

- Saída não tem; mas tem de haver - concluiu.

Sensação também reconhecida por Jabor, que enxerga justamente na desilusão política atual a oportunidade para se repensar algumas certezas. O cineasta se embrenhou pela trajetória de Luiz Inácio Lula da Silva até a presidência do país e também falou sobre os anos de governo de Fernando Henrique Cardoso.

- No período FHC houve a maior sabotagem do país, por parte do PT, do PSTU. A única coisa que funciona no governo Lula é a estrutura econômica herdada do governo anterior - disse, arrancando vaias.

Na segunda mesa Zona de conflito, o americano John Lee Anderson e o português Pedro Rosa Mendes discorreram sobre o jornalismo de guerra. Autor de Baía dos Tigres, Pedro foi taxativo sobre o resultado das guerras capitaneadas pelos países do Primeiro Mundo, que utilizam territórios em conflito para explorar suas riquezas.

- Por má-fé, as pessoas utilizam essas zonas de conflito para pilhar seus bens. Depois, isso retorna como no caso do 11 de setembro, do 11 de março, e agora do 7 de junho. O problema da invisibilidade que atinge as favelas brasileiras atinge também Serra Leoa, Angola, Iraque e Afeganistão - disse.

John Lee Anderson emocionou a platéia ao descrever a tragédia pessoal dos povos que vivem em locais devastados pela guerra:

- As pessoas se adaptam às condições, e não deixam de ser humanos, mas elas podem chegar a viver como se fossem baratas.

Depois dos problemas sociais foi a vez de recolocar a literatura no centro das discussões. O historiador Daniel Hahn mediou a mais internacional das mesas da Flip. O cubano José Latour, o brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza e o italiano Marcello Fois discutiram a literatura policial.

- Hoje, há mais filosofia e história. E menos pirotécnica - explicou Latour.

Da ficção policial à literatura clássica, no debate sobre Dom Quixote e sua Espanha, o historiador brasileiro Evaldo Cabral de Mello quebrou uma das mais atrativas funções da Flip: um diálogo mais informal. Ele leu mais de 10 páginas sobre o personagem de Cervantes, um ensaio interessante, mas pouco adequado ao estilo do evento. Muitos leitores saíram antes da palestra terminar e outros cochilaram.

- Cervantes morreu sem se dar conta da importância do personagem - disse.