Título: Ética e fidelidade
Autor: CARLOS ALBERTO SIQUEIRA CASTRO
Fonte: Jornal do Brasil, 26/10/2004, Outras Opiniões, p. A13

O descrédito popular quanto aos mecanismos da democracia representativa deve-se, em grande parte, à desmoralização do compromisso partidário entre o candidato eleito e a legenda que promoveu sua eleição. Não há nada mais destrutivo da ética política do que a insignificância histórica e social das siglas partidárias. Essa deformação confunde o eleitor, afastando-o do eixo dos ideais civilizatórios que impulsionam a cidadania. Se tal não bastasse, a promiscuidade da relação partidária conspira contra a aglutinação sadia e programática dos segmentos da sociedade, mercantiliza a carreira política e, não raro, empurra a massa de eleitores, como gado no corredor do abate, para a devora do charlatanismo eleitoral.

Agora mesmo se observa indecorosa movimentação de deputados e senadores, no bojo do projeto governista de enfraquecer as oposições e ampliar o arco de alianças de apoio ao governo no Congresso. Tudo não passa de ocupação predatória de espaço político, a demonstrar a dicotomia entre o universo axiológico da Moral e a prática do Poder (Celso Lafer, Desafios - ética e política, p. 17)). A política de desmantelamento dos partidos vem de longe. O Ato Institucional nº 2, de 1964 extinguiu as siglas partidárias tradicionais (PSD, PTB, UDN), as quais até então traduziam as principais correntes ideológicas da vida brasileira.

O próprio vocábulo ''partido'' foi considerado subversivo à ordem autoritária, quando então os situacionistas agruparam-se na legenda da Arena e a resistência democrática abrigou-se no MDB. Com vitórias eleitorais da frente de oposição nos idos de 1974 e 1978, os mentores do regime militar perceberam que o modelo bipartidário estava exaurido. Aliás, justamente para impedir defecções partidárias que pudessem comprometer o domínio do Executivo militar sobre o Poder Legislativo fragilizado, o regime pós-64 fez incluir no art. 152, § 5º, da E/C nº 1/69, a penalidade da perda de mandato para o parlamentar que deixar o partido pelo qual foi eleito.

Hoje, o que se observa é o mesmo projeto de debilitação das instituições partidárias. Basta ver que, no período de janeiro de 2003 até agosto de 2004, 141 deputados trocaram de partido. Destaca-se nessa revoada de aliciamento governista o inchaço ocorrido no PL e no PTB, legendas auxiliares do governo, que haviam eleito 52 deputados e contam hoje com 98. Os maiores partidos governistas já reúnem 372 deputados, 56 a mais do que elegeram em 2002, enquanto os partidos que hoje estão na oposição haviam eleito 175 deputados e presentemente contam com apenas 122, padecendo de uma redução de 30%.

A Constituição democrática de 1988 incluiu a fidelidade partidária dentre os princípios da organização partidária (art. 17, § 1º). Trata-se de norma integrante do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), nessa qualidade alçada em cláusula pétrea.

Sucede, porém, que o estatuto supremo, ao elencar, no art. 55, as hipóteses de perda de mandato parlamentar, deixou de mencionar a conduta mais radical de deslealdade partidária: o abandono da legenda política. Infelizmente, e sem grandeza exegética, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o postulado da fidelidade partidária não alcança a conseqüência da perda do mandato (v.g. MS nº 20.927-5-DF, Rel. Ministro Moreira Alves). Contudo, pela via da interpretação sistêmica da Constituição e da aplicação do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, poder-se-ia, com base no estatuto partidário, estender a sanção da destituição do mandato ao parlamentar que abandonar o partido pelo qual concorreu às eleições. A propalada reforma política bem que poderia começar pela revisão dessa mal inspirada jurisprudência de nossa Corte Maior.