Título: O Brasil esquecido pelo Brasil
Autor: DEONÍSIO DA SILVA
Fonte: Jornal do Brasil, 26/10/2004, Outras Opiniões, p. A13

Você acaba de assistir a um telejornal, em especial os noturnos, e não tem coragem de sair à rua

A literatura brasileira não é a maior, nem a melhor, nem a mais importante do mundo. Para os outros. Para nós, é. Se não é, deveria ser. É um dos mais complexos e ricos patrimônios de nosso país.

Quem nos tem definido e marcado ao longo da História é o olhar do Outro, do que vem e vê de fora. Nossas primeiras manifestações literárias não têm autores nossos. São viajantes, cronistas e padres letrados.

E hoje o olhar do Outro vê a floresta amazônica - bom, esta pode ser vista até do espaço sideral! -, os índios e as mulatas do Carnaval. E ultimamente, com obsessão impressionante, a corrupção e a violência urbana.

Nossa imprensa entendeu mal a ponderação do presidente Lula. Não se trata de ocultar os graves problemas que nos afligem, mas é pertinente questionar a insistência com que esses temas não saem da imprensa, ocupando o lugar de outros.

Os índios, humilhados sempre. As mulatas, proclamadas como beleza hegemônica, mas numa contradição impressionante, que mutila a condição feminina. A mulata é apresentada como um utensílio nacional com fins específicos, de uso. É como se, tirada do eito, viesse para a cama do senhor, de onde nunca mais saiu.

A corrupção tomou conta de tudo, é o que nos informam. Não é verdade. No público e no privado, profissionais competentes e éticos fazem das tripas coração para exercer bem seus ofícios. Mas não são lembrados nem para exemplo.

Será que não educamos mais as nossas crianças, estão todas abandonadas? Você acaba de assistir a um telejornal, especialmente se noturno, e não tem coragem de sair à rua. Nossos menores aparecem apenas dando tiro ou roubando. Os poucos que dão tiros e roubam não saem da imprensa. Dos outros pouco sabemos.

Também na literatura adotamos, por submissão, o olhar do Outro e obedecemos a capatazes literários já solidamente mais incorporados do que qualquer de nossos deuses africanos ou indígenas.

No Brasil convivem diversas nações. O que nos une é a língua portuguesa. Temos uma literatura de excelente extração de norte a sul, de leste a oeste. Em texto tão curto, não é possível sequer citar autores de relevo, ao passo que uma lauda é suficiente para a literatura de várias nações. Não para a do Brasil.

O mundo precisa conhecer nossas letras. Mas antes somos nós que precisamos conhecê-las. Alguns dos agraciados com o Prêmio Nobel em outras literaturas não chegam aos pés de Cecília Meireles, Drummond, Erico Verissimo, Jorge Amado. Por que jamais ganhamos?

É preciso retomar o instinto de nacionalidade presente na célebre notícia que da literatura brasileira deu Machado de Assis, na segunda metade do século XIX, escrevendo artigo para ser publicado em Nova York. E que, então, o mundo nos contemple com mais justiça.

Muita coisa mudou. Há novos autores, novas obras, novos temas, novos problemas. Quem ler, verá. Mas nós mesmos os ocultamos. Ontem como hoje, nosso olhar é equivocado. O que o Brasil fez nos eventos internacionais que mostram autores e livros ao mundo, depois da eleição de Lula? Afinal, um outro Brasil emergiu, após longo processo. Onde estão os livros que o antecipavam, anunciando as dores do parto?

Precisamos recuperar os autores que melhor espelharam o sistema literário, que não pode dispensar a tríade autor, obra, público. Autores importantíssimos, apreciados pelos leitores brasileiros, como comprovam as sucessivas edições, foram postos de lado. Não podendo ser enquadrados nas teorias de praxe, não foram mais editados e é como se não existissem, os vivos; ou como se não tivessem existido, os mortos.