Título: Tempos de servidão
Autor: JARBAS PASSARINHO
Fonte: Jornal do Brasil, 26/10/2004, Outras Opiniões, p. A13

A voz autorizada do Ministro Edson Vidigal, presidente do STF, na semana passada tão turbulenta, é a exegese cristalina da lei da anistia: esquecimento recíproco.

Quando assomei à tribuna do Congresso, defendendo, como líder do governo Figueiredo, a versão original da lei da anistia, logo percebi que nosso apelo pelo esquecimento recíproco não seria aceito pelos vencidos na luta armada. A vaia, que consegui silenciar em brevíssimo discurso, revelou que a lei não atingirá seu objetivo: a reconciliação nacional. Nosso projeto de lei era mais amplo que o do MDB, e ainda era vaiado.

Se a insatisfação derivava de considerar a lei não suficientemente ampla, geral e irrestrita, ao longo do tempo foi ela modificada até, no governo FHC, chegar ao máximo da amplitude, a ponto de proporcionar indenizações pecuniárias aos punidos por crimes, desde motim a atos terroristas causadores de mortes, de militares e civis. O presidente Fernando Henrique, ao sancionar a lei totalmente irrestrita, exclamou ser aquele instante ''o mais feliz de sua vida''. Milhares de postulantes dos benefícios da lei receberam indenizações vultosas, levando o presidente do PT, José Genoíno, a indignar-se e clamar: ''Anistia é reparação e não promoção financeira''. Ainda considerado pouco, promete-se ''reinterpretar'' a lei pra estendê-la ainda mais.

É imperativo reconhecer que não há, nem haverá esquecimento recíproco. Reiteradamente, explode o ressentimento. A prova mais recentemente foi a exposição de fotos de um homem nu, atribuídas a Vladimir Herzog. A que propósito? Mostrar os ''porões da ditadura?''. Mas, sobre isso, vasta literatura tem sido publicada, com a versão dos vencidos, descrevendo sobretudo o DOI-CODI de São Paulo, como tenebrosas masmorras. As fotos, afirma o governo da esquerda, são de um padre canadense e de uma mulher.

O padre, segundo a Folha de S. Paulo, que lhe remeteu as fotos, reconheceu-se em uma e não descartou, em entrevista ao jornal, ser dele a outra dada ''a baixa qualidade da imagem''.

O ministro Nilmário Miranda não recua da afirmação feita de que as fotos são do padre, que a Abin assegura ser.

A anistia, reconheça-se realisticamente, é um problema mal resolvido.

Indicação clara foi a tempestade de protestos iracundos à nota do Centro de Comunicação Social do Exército, tida como defensora da tortura. Quem a ler com o mínimo de isenção verá que não ofende a memória de Herzog. Não foi feliz ao proporcionar ilações que injuriavam o Exército, aproveitando-se os desafetos da oportunidade em que todo o noticiário vinculava-se à morte do jornalista, no DOI-CODI de São Paulo. Mas - insisto - é um despropósito malévolo dizer que justifica a tortura. A legítima reação, a que se refere a nota, foi aos que, ao diálogo, preferiram a luta armada. Luta aliás que se iniciou com guerrilha ainda em 1967, quando não só a imprensa era livre como as liberdades civis foram respeitadas. Ademais, tanto quanto sei, Herzog nunca fez parte da luta armada. Logo a nota provocou insultos coléricos exigindo punição por deputados radicais do PT, e de parte da mídia que viu na nota a ''repetição do jargão mistificador utilizado pelo regime militar''. Parte da ''mistificação'' foi ter tido a ousadia de lembrar outra verdade histórica, a de que ''o movimento de 1964 foi fruto de clamor popular''. E não o foi? E não o espelhavam os editoriais contundentes da grande imprensa? E o apoio maciço da Igreja? E a massa popular nas ruas, em defesa da liberdade e em nome de Deus? E o centro do poder nacional, os governadores do Rio Grande do Sul , o da Guanabara e o de Minas e São Paulo?

Uma Força Armada, diferente de milícias, sustenta-se em dois pilares vitais: a hierarquia e a disciplina. Obediente - como devido - o Exército atendeu ao seu comandante supremo e expediu nota nos termos considerados satisfatórios pelo presidente da República. Revanchistas logo festejaram a nota como retratação. Lastimar o ocorrido com o jornalista nosso é correto, mas não significa desdizer o que a nota do Centro da Comunicações nunca dissera: defender tortura. Disciplinado, o comandante do Exército evitou o desdobramento do caso, que poderia criar indesejável problema institucional. O Exército é uma instituição nacional permanente, que tem permanecido sempre a serviço da Pátria. Disciplinado, sim. Humilhado, jamais.