Título: Complexo de Cachoeira
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 15/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

Carlos Lacerda, em famoso discurso, ao tempo em que os discursos ainda tinham nomes, com o título de ''Corrida dos Touros Embolados'', falou sobre a arte do debate no parlamento. Dizia ele que, em tempos de paixão e crise, todos eram possuídos do desejo de brilhar e, então, passavam ao exercício de fingir. Depois de esgotar o tema, virou-se para os adversários que o atacavam com rudeza e afirmou: ''aqui até o ódio é fingido.''

Nós somos a primeira geração da humanidade que assiste na hora e na televisão a tudo que acontece. Este instrumento mostra a alma dos falantes, não somente seu gesto. É sem dúvida um tempo transformado. Nossos antepassados sabiam por ouvir dizer e ler, nós sabemos por ouvir e ver. O Conde Afonso Celso, filho de Ouro Preto, um dos mais brilhantes escritores do nosso país, passou pelo parlamento e deixou, num pequeno livro, Oito anos de parlamento, algumas impressões do que era viver no Congresso. Descreve tudo que viu, analisa os homens que assistiu falar, Rui Barbosa, Andrade Figueira, Joaquim Nabuco, Gomes de Castro (meu conterrâneo), e finaliza comentando um tipo de parlamentar que ele chama ''da véspera''. ''Finge a verdade, representa a perturbação, engana o público, a Câmara, o estenógrafo e a si próprio.'' E continua, cáustico: ''O político que está sempre a falar de sua probidade faz desconfiar que é tratante; da sua vigilância, que é preguiçoso; da sua gratidão, que é ingrato; da sua coragem que é covarde.'' No final, com sua experiência vivida, ensinava: ''Tenha sempre diante dos olhos a grande e veneranda imagem do povo.''

Falo destas coisas para alertar sobre o perigo dos espetáculos nas CPIs. É necessário transmitir e dar para a população a certeza de que realmente se investiga e deseja punir os corruptos e não brilhar a custa deles.

O parlamento, com todas suas mazelas e defeitos, é a maior de todos as instituições políticas criadas pela humanidade. Ele é o coração do povo. Ali pode-se questionar tudo, até o próprio parlamento. Não é por acaso que em frente a ele realizam-se os protestos, as demandas, os apelos, as pressões. Por isso mesmo diz-se que é melhor o pior parlamento do que parlamento nenhum. Não devemos julgá-lo pela realização imperfeita dos seus valores. Devemos - e essa será tarefa permanente - expurgá-lo dos que são indignos de a ele pertencer. Ele é a própria democracia. O parlamento tem a finalidade de fiscalizar e controlar o executivo e tudo. Para isso tem os discursos - os mais simples de todos os seus instrumentos -, os decretos legislativos, as comissões permanentes, as resoluções, o acompanhamento, os pedidos de informação e as comissões de inquérito. Para que tenham efeito, afaste-se a política menor do seu seio, a vaidade, o fingimento, a paixão. Vamos apurar os fatos, buscar a verdade, punir, adotar procedimentos para que os delitos não se repitam. Não se finja o ódio, porque ele muitas vezes é aquilo que dizia o provérbio judeu: ''a inveja alimenta o ódio''. E lembre-se o sentimento de Bertrand Russel e de Mencken (The Vintage, 1989): ''Mostre-me um puritano e eu lhe mostrarei um filho daquela.'' A ética e a moral não combinam com o teatro nem com o fingimento.

Di Cavalcanti me disse, uma vez, sobre determinado político: ''não pode ir a enterro porque quer ser o defunto para ser alvo das homenagens.'' É isso aí: complexo de Cachoeira.

José Sarney escreve às sextas-feiras no JB