Título: O desarmamento e o avestruz
Autor: Alfredo Sirkis
Fonte: Jornal do Brasil, 17/07/2005, Outras Opiniões, p. A12

Há alguns anos eu seria um adepto entusiástico do referendo sobre desarmamento e estaria engajado na campanha do ''sim''. Em relação ao comércio e posse de armas sou decididamente da escola européia, que os restringe ao extremo, ao contrário dos EUA, onde são considerados direito constitucional. A comparação das respectivas taxas de homicídio é convincente. Julgo em tese que, exceção feita aos caçadores, a sociedade deveria ser desarmada. Já fui possuído, nos anos 60 e 70, pelo fetiche das armas, mas depois disso nunca mais mexi com esses metais frios, feitos para matar. Se essa é minha posição, há muito tempo, de onde vem essa profunda sensação de mal-estar, essa dúvida cruel quando penso nesse referendo? De onde vem essa profunda irritação que me acomete quando vejo seus defensores - alguns, bons amigos - pontificarem sobre o quanto é importante votarmos pelo fim do comércio legal de armas no Brasil?

Vem da perplexidade de estarmos, no Rio, vivendo claramente uma regressão civilizatória. O retrocesso de uma situação em que o estado detém o monopólio das armas de guerra e da violência legal, para proteger a sociedade, de volta a um paradigma anterior, quando não havia estado capaz de desempenhar, minimamente, essa função, quando volta a se colocar, como no Velho Oeste - época em que se concebeu a famosa segunda emenda da Constituição americana - a questão da autodefesa.

Ao contrário do que sempre aconteceu na relação mídia x violência, pela primeira vez, o que é noticiado anda aquém (muito aquém!) do que acontece no Rio. Diariamente ocorrem crimes e episódios de violência que, no passado, virariam manchete, mas hoje nem são noticiados. As estatísticas e os números tornaram-se indicadores pouco relevantes. Numa situação anterior, era possível medir a eficiência da segurança pública pelo aumento ou diminuição das estatísticas de criminalidade. Hoje, elas não são confiáveis, e a expressão primeira da violência não é mais numérica, quantitativa, mas qualitativa: o estado de direito perdeu o controle territorial, não apenas sobre boa parte das favelas, como sobre áreas da chamada cidade formal, inclusive algumas das principais avenidas e vias expressas da cidade. O poder paralelo está começando a se exercer nos bairros e sobre segmentos da economia urbana.

Alguns exemplos, noticiados ou não, das últimas semanas: o trânsito na Linha Amarela, Linha Vermelha e Avenida Brasil, sobretudo à noite, mas por vezes durante o dia, virou situação de alto risco. As ruas das Zonas Norte e Oeste, à noite, estão desertas e, na Zona Sul, o esvaziamento já é claramente perceptível. O tráfico assumiu o controle da distribuição de gás e dos transportes de kombis e motos nas favelas. A construção irregular na Rocinha, que vinha sendo contida, recomeçou, e, ao contrário do que acontecia antes, agora está sendo diretamente controlada pelos bandidos. A usina da Comlurb, no Caju, vem sendo militarmente ocupada pelos traficantes, que seqüestram máquinas, jogam cadáveres nos caminhões e criam uma situação que poderá levar à desativação da mesma. Por outro lado, não há indício algum que a relação institucional de propina entre o tráfico e amplas bandas podres das polícias esteja em regressão.

O mais grave é o medo. A classe média carioca está intimidada, multiplicam-se assaltos e extorsões, diretas ou telefônicas. Estamos nos transformando numa sociedade medrosa, covarde, perplexa, impotente. Historicamente, no entanto, esse tipo de abatimento, na classe média, não dura eternamente: acaba gerando um sobressalto com a formação de milícias ou outros esquemas de autodefesa. Em geral, esses fenômenos são acompanhados por uma forte guinada à direita.

Quando os bandidos controlam territórios e aparecem mais no asfalto com seus armamentos privativos das Forças Armadas, a supressão do comércio de armas, legal, soa como uma ironia da história. Se examinarmos as estatísticas, notamos que os crimes interpessoais que podem ocorrer por causa do acesso a armas legais - ciúmes, desavenças, incidentes no trânsito, no bar - representam uma parte reduzida do total de homicídios, comparada à massa de crimes praticados com armamento ilegal, no contexto dessa guerra civil, de fato, que envolve o mercado das drogas e o controle de territórios.

Ouço os defensores do ''sim'' dizendo que a proibição de armas legais seria um primeiro passo a ser seguido por uma ação em relação ao armamento de guerra ilegal. Não seria o caso de inverter a equação? De primeiro mostrar serviço numa drástica redução do armamento disponível aos bandidos, para, depois, coibir o comércio legal? Senão o fenômeno do armamento ilegal crescerá exponencialmente, a proibição transformar-se-á em mais uma dessas famosas leis que ''não pegam'', servindo apenas para oferecer mais oportunidades à corrupção policial. Favorável, em tese, ao desarmamento, mas pouco inclinado à postura do avestruz, cogito votar nulo...