Título: Mundo ignora fome
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 17/07/2005, Internacional, p. A14

A maior crise nutricional da atualidade não acontece em Darfur, no conflituoso Sudão, ou nas áreas da Ásia atingidas pelo tsunami, em dezembro ¿ lugares que recebem as maiores quantidades de ajuda humanitária. Em Níger, 3,5 milhões de pessoas ¿ mais de 25% da população ¿ passam fome devido à seca e à praga de gafanhotos que, no final do ano passado, arrasou a já frugal colheita de cereais. Calcula-se que 1,2 milhão de nigerinos corram risco severo de morte. Pelo menos 150 mil são crianças, que estão gravemente desnutridas. Elas são a face mais sensível da calamidade no segundo país mais pobre do mundo. ¿ A seca é só parte do problema. Decisões políticas são a grande questão por trás da má nutrição ¿ alerta ao JB Emmanuel Drouhin, chefe dos programas da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Níger.

Nos anos 80, o governo de Niamey, capital do país, controlava com mãos de ferro o preço dos alimentos ¿ literalmente usando as forças de segurança para intimidar comerciantes. Mais tarde, para substituir este sistema artificial, autoridades se reuniram com os principais credores ¿ França, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial ¿ e, em 1998, elaboraram um quadro de segurança alimentar denominado ¿dispositivo¿, que criava um estoque nacional de cereais e um fundo de intervenção. Em 2000, foram estabelecidos seus dois objetivos principais: a melhoria durável da segurança alimentar e a prevenção e gestão de crises nutricionais. Tudo correto, exceto pela exigência de que não haja hierarquização entre ambos os objetivos.

¿ Níger privilegia o longo prazo ao curto, o desenvolvimento à assistência. Responde com programas de irrigação a uma situação que é emergencial, recusando-se a distribuir comida de graça para os famintos. O país escolheu abandonar a população do presente para preparar a proteção às gerações futuras ¿ critica o sociólogo francês Jean-Hervé Jezequel, depois de uma viagem de duas semanas à nação africana, a convite do MSF.

A Célula de Crise Alimentar (CCA) é um órgão anexo ao Gabinete, responsável pela coordenação da ajuda alimentar. É dele a tarefa de não dar, mas vender pela metade do preço as sacas de cereal. Segundo o relator da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, o governo age em obediência às regras criadas pelo FMI e pelo Banco Mundial, que proíbem a doação de comida e remédios aos nigerinos para incentivar a auto-sustentabilidade.

¿ Estas instituições financeiras e o governo do Níger acreditam que a redução da pobreza passa por programas de desenvolvimento estabelecidos sobre uma estrutura em que as pessoas têm ajuda, mas se puderem pagar. Tais decisões políticas sacrificam crianças hoje e vão continuar sacrificando no futuro, pois legitimam que, em nome do desenvolvimento, milhares de meninos e meninas morram de fome todos os anos ¿ lamenta-se Drouhin.

Em todo Níger, a produção de comida é dominada pela agricultura de subsistência ou por pequenas fazendas, pouco sofisticadas em técnicas agrárias e vulneráveis à falta de chuva. Diante da atual escassez, as sacas vendidas abaixo do preço pela CCA acabam indo parar nos mercados locais, onde sofrem alto ágio. O milhete, variedade de milho básica na dieta nigerina, chega a valer 500% a mais do que na safra. Preço proibitivo para grande parte dos trabalhadores, que ganham US$ 1 por dia.

A solução mais rápida para a crise nutricional está nas mãos das ONGs. Apesar de o governo desaprovar, elas podem distribuir víveres de graça para a população, especialmente nas províncias de Tahoua, Maradi, Dakoro e Keita, as mais atingidas pela seca e a praga de gafanhotos. Em maio, a ONU lançou um apelo urgente para que doadores reunissem US$ 16,2 milhões em ajuda aos nigerinos.

¿ Mas até hoje a resposta não superou os US$ 3,8 milhões ¿ afirmou o subsecretário da ONU para Assuntos Humanitários, Jan Egeland, lembrando que ¿as contas do tsunami transbordam de dólares, mas são doações expressas para o Sudeste da Ásia¿.

O dinheiro que chegou a Niamey foi suficiente apenas para alimentar centenas de milhares de pessoas e não as milhões que necessitam ainda de ajuda. Outro problema é que a ONU não conseguiu movimentar o mercado interno, adquirindo a comida dos agricultores locais, pois simplesmente não havia o que comprar. Os alimentos não-perecíveis estão sendo trazidos de outros países, do Oeste da África.

Enquanto isso, o presidente Mamadou Tandja tenta soluções burocráticas: subdividiu Níger em 106 áreas de vigilância e descobriu que ¿a situação é satisfatória em apenas 19; em todas as demais é crítica ou extremamente crítica¿.

¿ É provável que a solução da crise só chegue quando o governo resolver focar os financiamentos internacionais nestas áreas rurais onde a pobreza é mais aguda ¿ opina Robert Glew, diretor do Centro de Estudos Avançados de Desenvolvimento Internacional da Michigan State University.