Título: José Dirceu, personagem literário
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 19/07/2005, Outras Opiniões, p. A11

Em sua História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges tem um conto que nos ajuda a compreender o deputado José Dirceu, ex-ministro do presidente Lula. Trata-se de O estranho redentor Lazarus Morell.

José Dirceu, haja o que houver com ele, já nos pertence, é nosso personagem, é dos escritores cujas prosa e poesia têm perigosas ligações com a sociedade epocal. São os livros que o explicam, não a imprensa. Jornais e revistas são andaimes nesse caso.

Em 1994, quando o Brasil foi tema da Feira de Frankfurt, Affonso Romano de Sant'Anna, então presidente da Biblioteca Nacional, esbaldava-se em caprichar na apresentação de autores e livros brasileiros. Pois quando um grupo de escritores ia entrar ao vivo no Fantástico para comentar a festa, eis que surgem dois ou três cantantes que começam a rebolar. Foi o que bastou para que o foco mudasse e não fôssemos ao ar. Entraram eles. E quem perdeu foi, como sempre, o distinto público.

Boa parte dos ministérios de Lula herdaram o estranho vício do governo anterior, de pautar-se pela mídia, que neles reina soberana - pois a raiz dos escândalos não são justamente empresas de publicidade? -, ainda que, supostamente, contra o perfil dos ministros que os comandam.

Pois é nesse mundo cujos fragmentos alinhavo nesse artigo ligeiro que se move o estranho redentor José Dirceu. De líder estudantil passa a guerrilheiro urbano. Preso, integra o grupo trocado pelo embaixador seqüestrado. Vive uma temporada em Cuba, volta e hiberna por anos no oeste do Paraná, como silencioso dono de uma lojinha - nada a ver com a Daslu - onde casa e tem um filho, anos depois também dedicado à política, como o pai, que, aliás, recentemente o ajudou muito.

Jorge Luis Borges situa o berço do estranho redentor Lazarus Morell numa causa remota: em 1517, o padre Bartolomeu de las Casas, para redimir os índios do inferno das minas de ouro das Antilhas, propôs ao imperador Carlos V a importação de negros para trabalharem nas mesmas minas e nas mesmas condições.

Numa das passagens mais desconcertantes, Lazarus Morell abre a Bíblia ao acaso e prega uma hora e vinte minutos numa igreja, tempo suficiente para seus colegas roubarem os cavalos do auditório, surrupiados num Estado e vendidos em outro. Além de roubar cavalos, roubam também escravos, a quem propõem uma liberdade em etapas. O escravo deveria fugir do patrão e deixar-se vender por eles para outro dono, recebendo uma percentagem. E assim sucessivamente até alcançar a pretendida liberdade, jamais alcançada. No lugar dela, ''um balaço, uma punhalada baixa, um golpe, e a as tartarugas e os barcos do Mississipi recebiam a última informação''.

Qualquer semelhança com José Dirceu, em se tratando de personagens literários, é mera coincidência. Todavia convém prestar atenção ao alerta feito por um dos homens de ouro do presidente, o ministro Tarso Genro, para quem o Brasil pode virar uma Colômbia, se os brasileiros pobres perderem esta última esperança que levou um operário à Presidência da República.

Mas quem esteve comandando até agora o aborto dos sonhos de uma sociedade organizada e feliz, com as necessidades básicas de todos atendidas? Justamente a cúpula do Partido dos Trabalhadores. É, pois, chegada a hora do grande madalenismo e não dos esquemas e versões calcados na mais equivocada das suposições: a de que o povo brasileiro é bobo! Já cometeram este erro uma vez. O povo brasileiro, generoso e clemente, mais do que muitos outros povos, acolherá os arrependidos sinceros, mas abominará os mentirosos, como, aliás, já está fazendo.

Haja o que houver com José Dirceu, porém, ele já é grandioso como personagem. A História do Brasil não poderá ignorá-lo. Os escritores que gostam de misturar História e Ficção, muito menos!