Título: ''O governo ficou refém da crise''
Autor: Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 24/07/2005, Economia & Negócios, p. A23

Dessa vez ficaram de fora as saborosas citações de Nelson Rodrigues. Em novo livro, O Brasil e a economia internacional (editora Campus), o economista Paulo Nogueira Batista Jr. abandona sua maior fonte de inspiração ¿ aquela que lhe garante leveza e bom humor ao tratar dos áridos temas econômicos. Está, segundo suas palavras, mais sóbrio e contido. Mantém, no entanto, a profundidade revelada quinzenalmente nos artigos que assina no JB. O livro aborda a vulnerabilidade externa da economia e as negociações comerciais brasileiras, sobretudo a que ele chama de ¿mais perigosa¿: a Alca. Deseja, assim, contribuir para que o país supere os ¿descaminhos herdados dos anos 90¿ e retome a autonomia nacional perdida. Dois temas, duas visões diversas. Segundo o professor da FGV-SP, enquanto o Brasil se revela mais altivo nas negociações internacionais, repete equívocos do passado, com a perigosa combinação de juros altos e real valorizado. O efeito? Um alto risco de se fragilizar diante de eventuais choques externos. Impressionado com a blindagem da política econômica em relação à crise política (¿é como se fosse um mundo à parte, para o bem e para o mal¿), o economista afirma que o governo Lula perdeu a capacidade de tomar grandes iniciativas e se resignará a propostas ¿defensivas¿ para administrar a crise.

¿ No seu novo livro, o sr. aborda a vulnerabilidade externa e os modos de superá-la, por um lado, e as negociações comerciais, por outro, relacionando-os a uma idéia de que o Brasil deve retomar seu desenvolvimento como nação independente. O governo está sendo bem-sucedido no que o sr. chama de recuperação da autonomia nacional?

¿ Essa questão transcende o atual governo. A evolução do Brasil está inserida num contexto mais amplo. Em boa parte do mundo, especialmente na América Latina, houve uma onda de liberalização, de internacionalização, de fascínio pela chamada globalização dos anos 90, que em grande medida fracassou. Países que abraçaram essa agenda não tiveram sucesso. Hoje há um movimento de mudança em curso na América Latina. Esse movimento aparece mais nítido, por exemplo, na Argentina do que no Brasil. Mas mesmo no Brasil houve uma mudança gradual.

¿ Mas o fim do otimismo não se traduziu em política econômica menos ortodoxa.

¿ É verdade. O processo de mudança, no caso brasileiro, foi muito lento. Por outro lado, nossa postura nas negociações comerciais melhorou consideravelmente. O Brasil mudou sua postura na discussão da Alca e nas negociações do Mercosul com a União Européia. Assumiu um papel mais importante nas negociações da Organização Mundial do Comércio e nas negociações com os países em desenvolvimento, com países andinos, com a África do Sul, com a Índia. Mas no campo macroeconômico houve pouca mudança nos últimos anos. Se você compara a atual política macroeconômica com a do segundo mandato de Fernando Henrique, constata que as diferenças são muito pequenas. Isso não quer dizer que a situação macroeconômica não tenha melhorado. Não conseguimos ainda retomar o crescimento de maneira vigorosa, mas progressos foram feitos, sobretudo nas contas externas.

¿ Esses progressos são fruto de fatores externos mais favoráveis ou decorrentes de algumas ações mais eficientes por parte do governo?

¿ Em parte, é resultado de um ambiente externo mais favorável em 2003, 2004 e 2005 do ponto de vista comercial e financeiro. Mas a melhoria também resultou da resposta das empresas brasileiras que exportam ao estímulo proporcionado pela mudança cambial, iniciada em 1999. A resposta foi muito vigorosa e levou a um resultado bem melhor do que o esperado. Por isso me preocupa a tendência recente de valorização exagerada do real, que coloca em risco esses resultados positivos que o Brasil obteve nas exportações.

¿ Por que ocorre essa tendência?

¿ Ela decorre do escandaloso diferencial de juros que existe entre o Brasil e o resto do mundo. Apresentamos uma taxa básica de juros de 14% em termos reais. A média de outros 39 países, incluídos num levantamento da GRC Consultoria, é de apenas 1%. Nenhum banco central do mundo pratica juros reais comparáveis aos brasileiros. Isso gera estímulo à entrada de capitais voláteis de curto prazo, contribuindo para essa valorização que, no meu entender, é inconveniente.

¿ Quais as conseqüências?

¿ Essa combinação de juro muito alto com câmbio valorizado produz um efeito antiinflacionário importante. Derruba a demanda interna, deprime os preços de bens e serviços comercializáveis internacionalmente, afeta as tarifas públicas. Com essa combinação, consegue-se combater a inflação, mas o preço é muito alto em termos de crescimento econômico e nas contas externas. De 2003 para cá, tivemos um período muito favorável na economia mundial. Porém, o Brasil cresceu menos do que os países emergentes e menos do que a média latino-americana. Por outro lado, com a valorização do real, corre-se o risco de derrubar o dinamismo das exportações. Estamos repetindo velhos erros. Os países em desenvolvimento que conseguem crescer de forma sustentável são aqueles que combinam juros moderados com câmbio depreciado. O Brasil está fazendo o oposto mais uma vez: juros estratosféricos com câmbio valorizado.

¿ O livro retoma uma preocupação corrente dos seus trabalhos, a idéia da autonomia nacional e o nacionalismo. Que nacionalismo é este?

¿ Esse livro tem a pretensão de se inscrever numa certa tradição do pensamento econômico. Remonta, por exemplo, a Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, a Friedrich List, na Alemanha, à escola cepalina na América Latina, com Raúl Prebisch e Celso Furtado. Ou seja, um conjunto de pensadores que sempre frisou a importância de os países menos desenvolvidos se preocuparem com a defesa dos interesses nacionais e com a atuação do Estado para promover o desenvolvimento. Essa linha, que se contrapõe ao liberalismo, de um lado, e ao marxismo, de outro, sofreu um ataque muito forte no Brasil nas últimas décadas, especialmente dos liberais. No meu entender, devemos caminhar para retomar e atualizar esse pensamento.

¿ O sr. se refere a uma estratégia de autodefesa? Na prática, o que significa?

¿ Significa manter uma taxa de câmbio competitiva, uma política comercial de promoção das exportações e regulação das importações, significa regular a entrada e a saída de capitais, significa manter reservas internacionais elevadas. Tudo isso é fundamental para que o país tenha condições de navegar no mar turbulento da economia internacional, sem estar muito suscetível a choques e assegurando sua soberania.

¿ O Brasil parece bem-sucedido só nas exportações.

¿ Desde 1999, o Brasil deu alguns passos na direção certa. Mudou o regime cambial, permitindo uma depreciação significativa do real. Isso contribuiu para uma grande melhora nas contas externas. Mas falta muito ainda para que o Brasil tenha segurança externa suficiente. No campo da regulação de capitais, o Brasil deu um passo errado no governo Lula, facilitando ainda mais a remessa de capitais para o exterior. Nosso progresso é incompleto. E aí voltamos à questão do pensamento econômico. Quando se tem uma elite de tecnocratas formada no exterior, especialmente nas escolas norte-americanas, há risco de retrocesso. Nossos jovens vão para o exterior, absorvem técnicas, mas voltam mais identificados com valores de outros países do que com as tradições, os objetivos e os interesses nacionais. No Brasil, é preocupante que alavancas decisórias na área macrofinanceira estejam nas mãos de pessoas com esse tipo de formação, ou de deformação. E o livro que acabo de lançar é mais uma polêmica contra esse tipo de abordagem econômica.

¿ Para essa elite, nacionalismo é quase um palavrão.

¿ É. Mas já foi pior. O pior momento da alienação foi nos anos 90, quando o Brasil alcançou o auge do fascínio com a globalização. Depois do que ocorreu, começou a haver uma retomada da consciência crítica. O Brasil é um país com dimensão de tal ordem que, como digo no livro, não cabe no quintal de ninguém.

¿ Qual a sua avaliação sobre os efeitos da crise política sobre a economia? Até agora a economia não tem sido afetada. Mas tende a afetar?

¿ Por que não afetou? Em primeiro lugar, a situação da economia brasileira é melhor hoje em alguns aspectos do que era há alguns anos. Falávamos disso há pouco. Outro aspecto é que o quadro mundial continua bastante favorável para países como o Brasil. E o terceiro aspecto é que, de certa maneira, a política econômica do governo Lula corre em faixa própria. Normalmente, uma crise política grave como essa afetaria a política econômica do governo. Mas a política econômica não é propriamente do governo. É como se o governo Lula não tivesse nunca chegado a tomar posse na área da Fazenda e do Banco Central. A área econômica ficou protegida, para o bem ou para o mal (risos). A crise, no primeiro momento, abalou a área política do governo, afetou os focos de contestação à política econômica existentes dentro do governo.

¿ Solidificou, enfim, a política econômica.

¿ Removeu do governo aqueles setores que representavam a crítica mais forte à política econômica. Do ponto de vista dos mercados financeiros, portanto, isso não foi negativo até agora. Claro que se a crise continuar se agravando e atingir a Presidência ou o Ministério da Fazenda, a economia será afetada. Mas há algo curioso. As denúncias de corrupção e de irregularidades chegaram à presidência do Banco Central, até mesmo antes de essa crise estourar. E, no entanto, é como se estivesse blindada. Cai o chefe da Casa Civil, cai a cúpula do PT, caem as diretorias dos Correios, de Furnas, do IRB, mas o presidente do Banco Central, por enquanto, não caiu. É como um mundo à parte.

¿ Como resposta à crise ou não, discutem-se hoje propostas como a definição de metas de déficit nominal zero, que viria acompanhado de um choque de gestão, de um maior percentual de receitas vinculadas. Qual a sua avaliação sobre essa proposta?

¿ É o sinal do declínio do governo. Os projetos de maior fôlego, com investimentos de longo prazo, vão ficando para segundo plano. O governo ficou refém da crise política. Todas essas idéias são defensivas.

¿ Mas são tratadas como projeto de longo prazo.

¿ Para mim, não passam de propostas para atravessar uma crise. Essa crise tomou tal dimensão que o governo não tem mais condição de tomar grandes iniciativas. Terá de administrar a crise. Haverá um processo de luta pela sobrevivência. Não se pode esquecer que a crise não é só do governo. É do Congresso também. Do ponto de vista da agenda econômica de longo prazo, o Executivo e o Legislativo estão paralisados.