Título: Quinze anos sem sonhar
Autor: Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 24/07/2005, Rio, p. A27

Do guarda-roupas da sua filha mais velha, Marilene de Souza Santos, 53 anos, tem como recordação apenas um biquíni amarelo guardado pela avó de Rosana de Souza Santos, desaparecida desde 1990. A peça era a preferida de Rosana, moradora da Zona Norte, que aos 18 anos, 1,74 metro de altura, cabelos longos e negros, sonhava ser modelo. Marilene desejava apenas que Rosana lhe desse um neto. Os sonhos de mãe e filha foram abortados quando a moça e outros dez jovens, a maioria da Favela de Acari, desapareceram de um sítio em Magé, na Baixada Fluminense. Na terça-feira, dia em que se completam 15 anos da tragédia, as Mães de Acari, como ficaram conhecidas - principalmente pela interminável procura dos corpos dos filhos - vão rezar em missa na Igreja São José, no Centro. Mais de uma década depois do desaparecimento dos jovens, os executores não foram responsabilizados. As investigações também não avançaram. A cinco anos da prescrição do inquérito, ainda não virou processo no Ministério Público. Por falta de provas e testemunhas, o inquérito se arrasta na Delegacia de Homicídios, no Centro. Apesar de sequer esboçada uma esperança de justiça, as mães ainda esperam encontrar os vestígios mortais dos filhos.

- Não posso ficar em paz sabendo que os ossos da minha filha estão por aí - lamenta Marilene.

A mãe de Rosana soube do desaparecimento por um jornal. Marilene ainda lembra da manchete: ''Desaparecem 10 favelados de Acari''. Rosana, no entanto, morava em Coelho Neto. Ela namorava o também desaparecido Luiz Carlos, o Lula, 31, morador de Acari. Os oito rapazes e três moças desaparecidos se conheciam da escola e moravam em bairros vizinhos. Marilene pensava que Rosana tinha ido com o namorado para casa de uma tia. Já Vera Lúcia Flores, 56, acreditava que sua filha Cristiane Leite Souza, 16, viaja com a patroa para comprar bijuterias.

Surpresas com as notícias dos jornais e decepcionadas com as autoridades de Segurança Pública, Vera e Marilene resolveram investigar o que estava por trás das histórias contadas por suas filhas. Elas descobriram que as moças fugiram com os namorados para o sítio, depois que eles teriam sofrido extorsão de policiais do 9º BPM (Rocha Miranda), conhecidos por Cavalos Corredores e chamados assim por causa do barulho que faziam ao entrar na favela. Lula e Moisés Cruz, 27, namorado de Cristiane, eram ladrões de carga. Para deixá-los livres, os policiais exigiram dinheiro. No entanto, a quantia não foi totalmente paga.

- Laudicena (dona do sítio e mãe e avó de dois dos desaparecidos) contou que seis policiais, um deles encapuzado, chegaram ao sítio quando todos dormiam. Eles pediram documentos e conversaram - conta Marilene.

Na época, Laudicena disse que pulou a janela do quarto e se escondeu atrás de uma bananeira com o neto de oito anos. De lá, ela não escutou tiros e viu o grupo de jovens e os policiais saindo numa Kombi velha que usava para vender legumes. Alguns dos rapazes estavam descalços e as moças levaram colchonetes debaixo dos braços. Seis dias depois, a Kombi foi encontrada queimada e com vestígios de sangue.

- A perícia não soube dizer se o sangue era humano ou de animal. Foram várias denúncias e escavações em buscas das ossadas, mas nada de concreto foi achado - diz Vera.

Uma das denúncias apontava para policiais do Destacamento de Policiamento Ostensivo de Magé. Outra para o detetive João da Silva, o Peninha, acusado de integrar grupos de extermínio na região. Ele morreu um ano depois do desaparecimento dos jovens, num tiroteio.

- O motorista do Peninha contou que os jovens foram mortos um a um. As moças foram estupradas e todos baleados na cabeça, esquartejados e dados a um casal de leões que eram do Peninha - lembra Marilene, ainda acreditando que os restos mortais dos jovens estão em Magé.

Em 1993, Edméia da Silva Euzébio, 47 anos, que liderava as Mães de Acari, foi assassinada porque teria desvendado o crime. Era mãe de Luís Henrique, 16, também desaparecido. Depois do assassinato, segundo Marilene, muitas das mães resolveram não mais falar sobre o caso. Nos últimos anos, ela e Vera transformaram a dor em luta e se uniram às mães dos mortos nas chacinas da Candelária e Vigário Geral, em 1993.

- Sou neta de policial, mas hoje tenho medo da polícia e faço de tudo para não ser reconhecida. É difícil falar de justiça num país de injustiçados - desabafa Marilene.

Há alguns anos, as Mães de Acari receberam do estado R$ 10 mil para comprar casas populares. Hoje, algumas das mães estão doentes e desempregadas. Elas lutam por uma pensão.

- Ainda sofro com a ausência da minha filha. Quando vejo os meus outros filhos se arrumando para o baile, imagino Rosana escovando os cabelos - diz Marilene, lembrando que o dia do aniversário de Rosana e o Natal são os mais difíceis de suportar a ausência da filha.

- No Natal, quando estou comprando roupas, penso na falta que ela faz. No aniversário, mesmo sem olhar o dia no calendário, quando percebo, estou triste - lamenta Marilene.

Para sentir a presença da filha, Vera conta que tenta fazer a comida que Cristiane mais gostava: carne seca com abóbora.

- Por mais que eu insista, não consigo fazer esta comida. Me dá um nó na garganta - justifica Vera.