Título: As últimas horas de um mortal
Autor: Vivian Rangel
Fonte: Jornal do Brasil, 25/07/2005, Caderno B, p. B3

Os dias de Hélio Jaguaribe são regidos pela disciplina de quem, aos 82 anos, não confia no tempo e acredita estar escrevendo sua última grande obra. Na sexta-feira, horas antes de se tornar imortal, o sociólogo se permitiu violar a rotina espartana. Deixou de lado os ensaios e pesquisas para responder às cartas que o felicitavam e revirar lembranças marcantes de 57 anos dedicados aos livros, à política, à advocacia e ao jornalismo. Como de praxe, Jaguaribe chegou às 10h ao escritório do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), no Jardim Botânico. Após o primeiro cafezinho começou a datilografar na Olympia que o acompanha há décadas.

- Não sei ligar o computador, acho que porque sempre tive quem me ajudasse com os trabalhos. O computador é uma grande secretária - brinca.

A primeira tarefa da sexta foi rever o discurso da posse. E memorizar o complexo protocolo da cerimônia da Academia Brasileira de Letras, detalhado em uma fotocópia que há uma semana descansa sobre a mesa. Cercado de mapas, cronogramas e livros, Jaguaribe repassa a carreira enquanto gira sem parar uma caneta Bic. Sempre em sentido horário.

O tique contrasta com o semblante calmo. Ainda mortal, é impossível esconder a ansiedade. O sociólogo já consultou o relógio cinco vezes em duas horas. Restam alguns minutos antes das 13h, horário do almoço, para relembrar o início da carreira, quando se graduou em direito. A vontade era se tornar professor de ciências sociais, mas o ''salário de fome'' abortou os planos, dando início a uma carreira jurídica. E abrindo uma brecha para aceitar o cargo de editorialista do Correio da Manhã. A rotina do tempo em que ser jornalista era sinônimo de bon vivant é lembrada com saudades.

- Todo o dia, às 11h, eu passava na casa do Paulo Bittencourt, o editor, para discutir o editorial, o que nunca fazíamos, entretidos com divagações sobre filosofia e cultura. Ele olhava o relógio com freqüência e eu tinha certeza de que não agradava. Depois, descobri que estava sempre dominado pela ansiedade do primeiro drinque. Sua educação não permitia bebidas antes de meio-dia - conta, às gargalhadas.

A quebra da rotina se exacerba com o atraso para o almoço, ao começar uma entrevista pelo telefone. É o momento de opinar sobre o mensalão e prever que o comando volte em breve para o PSDB, partido que ajudou a fundar, em 1988. Ao desligar o aparelho, garantiu que seria a última conversa estritamente política do dia:

- No discurso de posse, homenageio os dois últimos ocupantes da cadeira 11: Darcy Ribeiro e Celso Furtado. E depois da solenidade vamos conversar, tomar um drinque. Não é o momento para discussões profundas como as razões da crise.

No caminho para casa, o fundo musical é a Rádio MEC. Música clássica, vinho e filosofia são o que a vida tem de melhor para Jaguaribe. Bastam cinco minutos para que ele abandone a sinfonia de Mozart e comece a falar sobre... política. O sociólogo acredita que o futuro do país está no que batizou de neo-humanismo - um sistema em que ''a liberdade racional do homem seria complementada com valores sociais e ecológicos''. Na prática, isso pode começar inclusive com uma união entre PSDB e PT. Sobrevivente de tantas crises políticas, ele não retirou a utopia do seu dicionário.

A candidatura à cadeira 11 é mencionada de forma contida. O sociólogo, com o gabarito de quem já publicou mais de 40 livros, garante que só começou a pensar no famoso chá com sequilhos por insistência dos amigos Candido Mendes e Afonso Arinos de Mello Franco. Um telegrama para todos os imortais, em 2003, tornou pública a intenção. Nas semanas seguintes enviou amostras de seus livros e fez visitas pessoais a pelo menos 15 escritores.

Foi na terceira candidatura que o sociólogo conquistou a vaga. Na primeira tentativa, quando concorria com o escritor Paulo Coelho e o diplomata Mário Gibson Barbosa, não houve vencedor. Na segunda, ganhou o escritor brasileiro mais vendido no mundo. A derrota, garante Jaguaribe, não deixou mágoas:

- Paulo Coelho já vendeu 65 milhões de livros é um sucesso literário indiscutível. Além disso, a crítica hoje não tem relação com a vendagem. Ele foi eleito por mérito.

As candidaturas frustradas foram recompensadas com uma eleição unânime. A comemoração efusiva ao receber a ligação de Candido Mendes com felicitações teve uma pausa quando ele se deu conta de que a imortalidade tem seu preço:

- O fardão é muito caro, por isso normalmente o governo banca a compra. Mas eu não quis ficar devendo favor ao casal Garotinho. Por isso desembolsei os R$ 35 mil da roupa.

Na hora de comprar o colar, driblou a insinuação do joalheiro sobre o requinte de Roberto Marinho ao encomendar um de ouro puro. Deu adeus a mais de R$ 1.500 pela confecção de uma peça banhada em tinta dourada. A espada e o chapéu que usaria na cerimônia ele não precisou comprar: foram herdados do Visconde de Jaguaribe, seu bisavô.

O giro da chave ao entrar é a senha para começarem os preparativos para o almoço. A família de cinco filhos - quatro mulheres e um homem - está reunida. A recomendação é almoçar algo leve e descansar antes da cerimônia. Mas a vida literária do sociólogo, que começou com Júlio Verne e o faroeste do alemão Karl May e seguiu com Homero, Baudelaire e Eça de Queiroz, não está para momentos contemplativos. É o clímax de sua história entre as letras. E ele tenta conter a animação com modéstia.

- O melhor da academia são as discussões literárias e a convivência com pessoas de posições políticas diferentes. Mas não vou poder ir a todas as reuniões semanais. Há O posto do homem no Cosmo, meu novo livro, os trabalhos no Iepes...

Precisamente às 18h45 ele sai de casa, no Jardim Botânico, rumo à ABL. Segue pela Rua Carlos Luz, homenagem ao presidente derrubado pelo golpe do general Teixeira Lott. Em minutos alcança o Centro e deixa o plano dos mortais. Um trajeto tranqüilo, sem a ameaça de golpistas, ou de alquimistas. E com a proteção extra da espada do visconde.