Título: Fome (zero) de literatura
Autor: Ademir Assunção*
Fonte: Jornal do Brasil, 23/07/2005, Idéias, p. 5

Em uma cultura cada vez mais dominada pela imagem, a literatura se converteu numa espécie de prima-pobre das artes. Até mesmo nas políticas públicas que estão sendo criadas, vemos grandes investimentos, inclusive das estatais, em cinema, teatro, música, dança. Em literatura, ainda, quase nada. No entanto, a literatura trabalha diretamente com o idioma de uma comunidade. Quer dizer: com a moeda corrente que utilizamos todos os dias para nos comunicar com o outro, para nos fazer entender e tentar entender o mundo. Portanto, tem papel fundamental em qualquer sociedade.

O enfraquecimento da criação, da difusão e do acesso à produção literária, é fácil notar, descamba rapidamente para uma anestesia geral e uma incapacidade crítica e seletiva do público. Especialmente nos dias de hoje, em que estamos expostos a uma avalanche de lixo veiculado pela televisão e pelos meios de comunicação em geral, é fundamental que o poder público compreenda e assuma sua responsabilidade de incentivar as iniciativas artístico-culturais e garantir o acesso do público a elas.

Uma política cultural eficiente para a literatura terá, necessariamente, que enfocar dois eixos: o da criação e o da leitura. A despeito da produção literária de altíssima qualidade, o Brasil é um país de poucos leitores. Há um hiato, uma distância, entre os dois pólos. Produz-se boa literatura no Brasil, mas o público não toma conhecimento, não tem acesso. É preciso, então, urgentemente, aproximar essas duas pontas do mesmo fio.

Campanhas com jogadores de futebol na televisão não adiantam nada. É preciso levar os criadores para onde está o público: principalmente as escolas, os colégios, as universidades. Isso pode ser feito facilmente através de programas públicos organizados e levados a cabo seriamente. É preciso ter em mente, também, que não basta apenas aumentar o número de leitores. Precisa aumentar a qualidade de leitura. Isso é fundamental. O que adiantaria sermos uma Nação de grandes leitores de livros de... auto-ajuda?

No final de 2004 o governo federal anunciou a desoneração de todos os impostos da cadeia produtiva do livro e propôs, em contrapartida, que os grandes editores contribuíssem com 1% do seu faturamento bruto para a criação do Fundo Nacional do Livro. Houve concordância geral. Um passo importantíssimo: é fundamental que esse Fundo seja de fato criado e que os recursos sejam bem aplicados nos dois pólos: o da leitura e o da criação. E que seja um Fundo Público, gerido com critérios transparentes e democráticos.

O Projeto de Lei do Livro, da Leitura e das Bibliotecas, encaminhado ao Congresso Nacional, é uma ótima iniciativa para o estabelecimento de políticas públicas, mas ignora o principal agente da cadeia produtiva: o escritor. O inciso ''d'' do artigo 18, estabelece entre as atribuições do Conselho Nacional do Livro e da Leitura, a ser criado, a tarefa de ''propor às instâncias competentes, políticas e programas de promoção da indústria editorial como estratégia de desenvolvimento econômico e social, e promover ações de incentivo à comercialização e exportação de livros, como atividades de potencial econômico''. É evidente que a indústria editorial tem esse papel de desenvolvimento econômico, mas, ao não mencionar, em nenhum artigo do Projeto de Lei, o incentivo à criação literária, o texto peca ao transformar a literatura em mera questão de mercado. É como se fossem criadas políticas para a agricultura sem a participação dos agricultores.

Atentos a essas falhas, um grupo de 180 escritores de vários estados do país entregou às autoridades do Ministério da Cultura, em novembro de 2004, o manifesto Temos Fome de Literatura, com cinco reivindicações e 10 propostas básicas para o estabelecimento de políticas públicas para a literatura e não apenas para o livro. O manifesto, entre outros itens, reserva amplo apoio a proposta do governo Lula de criação do Fundo Nacional do Livro e da Leitura (reivindicando a inclusão do termo ''literatura'') e propõe que 30% dos recursos sejam aplicados em projetos independentes de criação literária: produção de revistas, CDs, jornadas literárias, bolsas de criação, caravanas de escritores pelas universidades e colégios de todo o país, intercâmbio com outros países etc.

No momento em que se discute a implantação do Plano Nacional do Livro e da Leitura é importante que o poder público tenha claro a necessidade do fomento à leitura mas também à criação literária, e não apenas ao seu produto, o livro. Livro pode ser qualquer um. Literatura são outros quinhentos. Isso é fundamental para que tenhamos um país não apenas de leitores, mas de bons leitores. E uma literatura forte, viva, em movimento, que possa se ombrear a de qualquer outro país do planeta.

*Ademir Assunção é autor dos livros Zona Branca e Adorável Criatura Frankenstein, entre outros. Está lançando o CD Rebelião na Zona Fantasma. Integra o Movimento Literatura Urgente.