Título: A venda aos poucos
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 21/07/2005, Outras Opiniões, p. A13

''...será que (...), quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato, - que já se vendeu aos poucos, faz tempo?''

Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

Começam a ficar mais evidentes as conexões entre Marcos Valério, Delúbio Soares e os descaminhos da corrupção no PT e seu governo. Os depoimentos recentemente prestados parecem indicar, entretanto, um acordo procurando ''envolver'' o partido num esquema de desvio financeiro eleitoral - algo que, dizem, é feito por quase todos - e, desse modo, blindar e isolar o núcleo duro do poder político do PT e do governo Lula no escândalo do mensalão. José Genoino e José Dirceu, para não falar de Lula, todos teriam sido pegos de surpresa com tamanha ''autonomia'' de ação de alguns de seus principais dirigentes, com trânsito livre e direto no Palácio...

Delúbio e Valério assumiriam, então, toda a responsabilidade pelas mazelas e achaques (respaldados pela entrevista de Lula no exterior) onde se sobressai a idéia de que o PT, e não o governo, seria responsável pelas ações que tinham como objetivo aprovar as propostas do governo Lula. E, imaginam os mentores desse engenho, a sociedade aceitaria que tudo isso ocorreu por conta do descontrole de alguns ''maus dirigentes'' que tinham toda a liberdade para, sozinhos, contrair empréstimos de somas que levaram ao PT a um endividamento brutal. E tudo isso para beneficiar as políticas do governo, isto é, do Palácio do Planalto.

É, entretanto, muita ingenuidade imaginar que uma montagem dessa ordem possa ''esclarecer'' o que talvez seja o mais escabroso caso de corrupção política no Brasil recente e que, desse modo, seria aceita pela população, pela opinião pública, pela justiça, pelo ministério público, pelo núcleo íntegro dentro do Parlamento, pela mídia com alguma independência etc.

Se o esquema PC Farias/Collor foi provavelmente o máximo da corrupção para fins privados, vivenciada para enriquecimento de uma máfia também privada, o esquema Delúbio/Valério e da direção do PT talvez seja o mais virulento caso de corrupção para fins políticos, usado para comprar e vender almas visando a aprovação espúria das propostas do governo. Grupamento que, aliás, sempre contou com a concordância, respaldo e reconhecimento do chamado ''Campo Majoritário'' de Lula que controla quase tudo no PT e que, até ontem, defendia a gestão do quarteto Genoino, Delúbio, Pereira e Sereno.

O controle férreo que esse núcleo do PT tinha dos cargos no governo não se devia, então, a uma preocupação ético-política frente ao costumeiro loteamento do Estado e dos empregos públicos, na velha tradição latina que nos acompanha desde a montagem do nosso estado colonial, mas sim algo mais subterrâneo, garantidor do saque das estatais para o ''caixa dois'' do PT. (Vale lembrar, aqui, dos episódios nebulosos e tenebrosos das mortes de Celso Daniel, prefeito de Santo André e de Toninho, prefeito de Campinas, ambos até agora carentes de real elucidação.)

Esse controle férreo dos cargos públicos garantia, também, os vínculos espúrios com setores do mundo privado, dando continuidade ao velho esquema da corrupção das concorrências públicas e vantagens para os amigos dos novos reis, que esse núcleo dirigente do PT muito rapidamente se adaptou e fez proliferar, numa dimensão completamente inimaginável até pelos seus mais duros oponentes.

Mas a corrupção política contemplava a compra de parlamentares, a dança das legendas, como estão sendo confirmadas, tudo visando à aprovação das votações de interesse do governo, como as (contra)reformas da privatização/financeirização da previdência pública, o saque dos aposentados, a liberação dos transgênicos, a aprovação das PPPs (parcerias público-privadas), dentre outros embustes que desconstroem cada vez mais o país.

Nos casos de corrupção, ponta visível de um país socialmente cada vez mais destroçado, além da diferenciação entre a corrupção para fins privados ou políticos, é preciso compreender e investigar, até o fim, custe o que custar: 1) quem são os corruptores e de onde de fato vinham os recursos; 2) quem são os corrompidos; 3) quais os reais executantes e mandantes; e 4) o que é ainda mais importante, quem se beneficiou e a quem interessava o ato corruptor.

Esse é o único caminho para impedir que alguns, menos expressivos, paguem pelo crime que pode ser de muitos, no PT e dentro do Palácio. As CPMIs terão que investigar cabalmente, sob pena de achincalhar a vontade e o sentimento público nacional. Pizza não dá mais: estamos muito próximos do limite e em muitos pontos a situação é muito mais grave do que aquela experimentada pelo governo Collor.

O que nos leva a concluir com Guimarães Rosa: será que a alma já estava sendo vendida, sem se saber; será que ela já se vendeu aos poucos, faz tempo?