Título: As duas verdades
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 01/08/2005, País, p. A2

Um dos mais belos filmes de André Cayatte, Les deux verités mostra como uma história pode ser contada de duas formas antagônicas ¿ e ambas verossímeis. O cineasta se inspirou em Manon Lescaut, romance do Abade Prévost, que narra a corrupção de respeitável cavalheiro do século 18 por sua amante. O filme começa com a versão oposta, ao mostrar o julgamento do acusado de seduzir, aterrorizar e assassinar uma adolescente. Incomodado com a incompetência do defensor, que pedia clemência para o réu, velho advogado, suspenso do exercício profissional por embriaguez e deboche, consegue que o juiz o aceite para a defesa, e conta a outra história ¿ aí, sim, recorrendo a Prévost e sua novela. O assassino deixa de ser o sedutor, para ser o seduzido, com sentimentos de amor corrompidos pela precoce cortesã, que o leva ao desespero e ao homicídio. O advogado não traz provas para o tribunal, mas o raciocínio dialético: E se a história houvesse sido outra, se houvesse sido assim?

O enredo da história que está sendo contada, diante do tribunal da opinião pública brasileira, não tem a grandeza de Prévost e de sua novela, nem a genialidade do cineasta francês, que, desde Justice est faite, se dedicou a estudar o jogo entre crime e castigo - mas nos incita a certas conjecturas.

Em entrevista divulgada ontem pelo Correio Braziliense, o brasilianista norte-americano Thomas Skidmore deixa o indício para outra versão dos fatos. Ao comentar a possibilidade de impeachment, diz o estudioso: ¿Mas vale dizer que quem está de olho nessa situação é Fernando Henrique Cardoso. Até parece que tem a mão dele nessa crise toda.¿ O fato é que, até agora, os prejudicados têm sido o PT e os tucanos mineiros, o que, aparentemente, favorece o PSDB de São Paulo.

Se a mão do ex-presidente se move nessa crise toda, trata-se de outro de seus gestos audaciosos, e confirma a suspeita de que, ao contrário de sua autodefinição, ao assumir o governo (¿sou mais inteligente do que vaidoso¿), a vaidade lhe esteja perturbando a lógica, e autorizando versão fantástica sobre os fatos atuais, que começou a circular em Brasília. Alguns dados, como o fato de não aparecerem mais documentos sobre as atividades de Valério no governo anterior (muitos foram queimados), ajudam a disseminá-la. Segundo essa segunda verdade, os grandes interesses em jogo infiltraram Marcos Valério no PT, a fim de corromper homens certos. Afinal, o PSDB já se servira de Valério, e do mesmo esquema de financiamento. Ao se desemaranharem os fios dessa confusão, a verdade deverá aparecer.

Nas últimas horas, com o anúncio de que o empresário pretende prestar outro e definitivo depoimento, informa-se que Fernando Henrique prepara resposta contundente ao envolvimento de seu partido nos negócios de Valério. Será mais uma de suas jogadas, a fim de permanecer como coringa solto no jogo? Ou, percebendo que os atores fogem do roteiro, insistirá em que só a História poderá julgar seu governo? Se for assim, podem argumentar os defensores de Lula, vamos esperar que ele cumpra o mandato, e passem décadas, para que a História também venha a julgá-lo.

Skidmore se permite ¿ como quase todos os anglo-saxões ¿ a dar-nos lições, e não propriamente éticas. Diz, por exemplo, que Lula está fazendo confusão, e que lhe falta um pouco de cinismo. Podemos aceitar que Lula seja ingênuo e que lhe falte malícia ¿ embora seja difícil mapear a alma de qualquer pessoa. Mas concluir que, para governar, é preciso cinismo, é ir longe demais. Os homens públicos não devem ser cínicos, mas, sim, céticos, como Tancredo, também citado por Skidmore, e como símbolo da ética, sempre foi.

E se a história, tal como no filme de Cayatte, tiver sido outra? Nesse caso, Marcos Valério teria sido instrumento de vasta conspiração, a fim de inviabilizar a reeleição de Lula, desmoralizar a esquerda e legitimar, pela repetição, falcatruas passadas. A versão merece crédito. As revelações desta semana provam que todo tudo que é espantoso pode ser real.