Título: ''Atacar a elite é demagogia''
Autor: Paulo Celso Pereira e Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 31/07/2005, País, p. A5

Logo após as eleições presidenciais de 2002, o historiador José Murilo de Carvalho decepcionou os mais empolgados com um alerta: o governo do presidente Luiz Inácio Lula de Silva não iria refundar o país. Dois anos e meio depois, em sua sala no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, ele se diz surpreso: ¿A corrupção no Brasil é endêmica, mas agora estamos numa fase epidêmica¿. Considerado um dos maiores estudiosos de cidadania e profundo conhecedor da política brasileira, o professor divide seus dias entre a pesquisa, as aulas na UFRJ e na Escola de Guerra Naval, e os livros, nos quais analisa capítulos fundamentais da história Brasileira. Este mês chegou às livrarias mais um destes: Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar Editor). Depois de escrever obras essenciais sobre o Império e a República, José Murilo analisa agora o papel dos militares ao longo da República brasileira, partindo do Golpe de 1964, segundo ele, ¿por uma razão vital¿: ¿ Não creio que os militares foram um instrumento da burguesia industrial para ganhos econômicos e políticos. Na minha visão, eles tinham e têm interesses próprios.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras no ano passado, José Murilo de Carvalho é cético em relação à corrupção no país. Segundo ele, há um problema cultural na base da democracia brasileira.

¿ A frase que mais ouço atualmente é: `Estou estarrecido¿. Tudo bem, mas essa indignação moral faz avançar muito pouco. Essa cidadania só mudará quando mudar nossa concepção sobre dinheiro público e privado. Quando entendermos que quem está roubando dinheiro público, rouba a mim.

- Em seu novo livro, o sr. ressalta a pouca atenção aos estudos das Forças Armadas no Brasil. Isso valia em 64 e vale para hoje. Por que os estudos se justificam?

- Comecei a estudar esse tema por uma razão vital. Estudante naquela época, estava muito envolvido com o cenário político. Era um momento extraordinário da história do país. Aquilo nos envolvia com muita paixão. Sabíamos que o Brasil estava às vésperas de grandes mudanças. Éramos parte daquilo. De repente, o golpe. Foi um choque. Minha geração ficou marcada. Esperávamos o golpe de alguma maneira, mas não naqueles moldes. Tinha havido golpes da direita em 37, em 45, em 54. Achávamos que os militares contribuiriam e depois devolveriam o poder aos civis. Na academia, não se previu o que ocorreu. Ignoraram-se as mudanças sofridas pelas Forças Armadas. Ninguém se deu conta dessas mudanças e o regime militar durou 24 anos.

- Mas há o livro do Wanderley Guilherme dos Santos.

- Verdade. Quem dará o golpe no Brasil? previu o golpe, mas não um governo militar como aquele. Foi o livro que mais se aproximou. Quando os militares deram o golpe, avisaram: ''Estávamos acostumados a tomar o poder e entregá-lo aos civis. Dessa vez, vamos ficar''. Para ficar, porém, seria preciso duas coisas: primeiro, a convicção de ficar. Segundo, a capacidade de ficar. Uma mudança na cabeça e outra na estrutura das Forças Armadas. Essa foi a razão por que procurei estudar. História é algo do passado, mas sempre a partir do presente. Fui então à Primeira República. Vi que na década de 30 estava a chave da mudança.

- E o que exatamente mudou?

- O ponto central está na frase do Góes (Monteiro), responsável por montar a corporação. ''Não faremos a política no Exército, mas a política do Exército''. Buscou-se afastar os militares da política partidária. Até a República Velha, a organização foi fragmentada. Basta ver as dezenas de revoltas militares eclodidas no período. Era preciso acabar com a falta de unidade interna, revelada em 30, 32, 35, 38. Vetou-se a entrada de gente com ideologia suspeita, criou-se uma estrutura hierárquica de comando, reformou-se o disciplinamento interno. Ao mesmo tempo, deu-se justificativa política. Góes dizia que, no Brasil, há duas forças organizadas: a Igreja e as Forças Armadas. E caberia às Forças Armadas a tarefa de ajudar o Brasil na modernização. Nisso, inclui-se o nacionalismo militar.

- Por que os acadêmicos não perceberam essas mudanças?

- Não havia esquema teórico adequado para se estudar. Do ponto de vista marxista, por exemplo, os militares armam o Estado. E o que é o Estado? O braço executivo da burguesia. O marxismo estudava as derivações econômicas, que não são teoricamente relevantes para estudar as Forças Armadas. Qual a diferença da minha análise para a marxista? Não creio que os militares foram um instrumento da burguesia industrial para ganhos econômicos e políticos. Os militares tinham e têm interesses próprios. Havia um interesse corporativo e um interesse nacional, industrializante, que se combina com o projeto de algumas elites civis. Havia uma aliança, sem dúvida, mas não só. Tanto que logo depois do golpe, vários aliados de véspera começaram a romper. Os marxistas, ao contrário, analisariam os conflitos dessa burguesia - agrária e urbana - e a utilização dos militares para seus interesses.

- A cabeça militar ainda pensa assim?

- Há dois anos dou aula na Escola de Guerra Naval e, nos contatos que tenho com amigos que dão aula no Exército, percebo que a cabeça dos oficiais hoje é democrática. O pensamento mudou. Minha impressão é muito boa. Realmente não acham que devam interferir na política. Estão preocupados com suas questões. Reclamam da falta de recursos. Da política, têm a preocupação que todos temos. Preocupam-se com o país, as falhas do sistema, a corrupção, mas não acham que a solução seja uma intervenção.

- Há arrependimento em relação a 64?

- Para essa geração, 64 é algo muito distante. É passado. Para mim, é memória. Para eles, não. Eles ouviram falar, leram sobre o assunto, mas nada daquele envolvimento da minha geração, daquela paixão que despertava ódios. Cheguei a ler um trabalho onde se via a palavra ''ditadura''. No entanto, consideram que há poucos recursos para as Forças e há uma má vontade da imprensa, dos políticos e dos intelectuais em relação aos militares. Sabem também que a opinião pública é favorável a eles. Pesquisas perguntam quais as instituições confiáveis no Brasil: Igreja, Forças Armadas e família lideram. Mais do que o governo. Se o brasileiro médio apóia, a elite tem resistência.

- Ouvir o senhor falar da disposição democrática é um alívio para um momento de instabilidade. Sempre se imagina que denúncias como essa podem resultar numa crise institucional.

- Quando escrevi a apresentação e a conclusão do livro, supunha que a fragilidade da nossa democracia estava na profunda desigualdade, que pode provocar distúrbios sociais, descontrole nas cidades, marginalidade. Não previ, no entanto, o que está acontecendo. Ainda bem que o último parágrafo diz que poderíamos ser surpreendidos. E fomos. De um lado, o que está ocorrendo confirma essa idéia de que as Forças Armadas não estão dispostas a intervir. Não se ouviu uma palavra de militares sobre o assunto. Como nós, eles estão vendo isso com uma preocupação séria. No cenário mais catastrófico, há o impeachment, um mecanismo normal e democrático. Mas não se sabe onde vai parar.

- O senhor se surpreendeu com as denúncias?

- Logo depois da eleição dei entrevista na qual não embarcava no entusiasmo geral. Nunca acreditei numa refundação do Brasil com a chegada de Lula ao poder. Alertei que as coisas são muito mais lentas e iriam continuar iguais. Foi um passo à frente para o país a oposição chegar ao Planalto. Nisso acho que vi corretamente, mas não enxerguei o que viria depois. Claro que ficamos preocupados com as alianças estranhas que o PT fez. Posso dizer que me surpreendi, mas não vejo nada de catastrófico. Não podemos ter uma reação puramente moralista. A corrupção é um problema social. Não é de hoje. O que ocorreu de diferente? Apenas um partido que fez seu nome e fama combatendo isso, quese viu cometendo os mesmos equívocos. A pergunta é: há algo de diferente? Não. A corrupção é endêmica. De vez em quando sofre epidemias. Agora, estamos numa fase epidêmica. Mas não vejo as instituições pararem. Dá para superar.

- Como o senhor analisa essa opção do presidente Lula de atacar as elites?

- É um perigo. Não corresponde ao que de fato ocorreu. As ''elites'' do setor financeiro são as mais privilegiadas pelo governo dele. Quem quer derrubá-lo? É uma inverdade. É uma tentativa de criar um bode expiatório para livrar o governo e o PT de responderem às denúncias. É demagógico. É chavismo.

- Isso pode trazer conseqüência mais grave?

- Não creio. Quem vai sair às ruas para defender o Lula? Talvez os sindicalistas que apóiam o presidente. É uma palavra forte, mas há hoje um neopeleguismo, com sindicalistas ocupando vários postos. Esses, sim, são os que estão tentando fazer manifestações. Lula reagiu tarde e mal. Custou a tomar atitudes e está resistindo a fazer coisas mais enfáticas. Não está acreditando na dimensão da crise.

- Um ponto importante a discutir é o grau de participação do presidente na corrupção. Se foi omisso ou conivente, por exemplo.

- Os rumos, daqui para frente, têm muito a ver com a negociação partidária. O problema é que a tática de defesa do PT hoje é atacar o PSDB, o partido que parecia mais disposto a conversar. Se romper as pontas aí, a coisa fica muito séria. É um embate que pode tomar rumos perigosos. O governo deve levar em conta a opinião pública, que é uma novidade no país. Desde Collor, a opinião pública tem grande peso. E ela está insatisfeita com o governo e o PT, ao contrário do povão. Mas a atuação do cidadão é precária. É preciso muito mais do que ficar estarrecido. Precisamos pensar no dia seguinte à crise. Isso implica repensar o sistema político. Lembrem-se de que o povão está recebendo dinheiro do Bolsa Família, que tem um impacto clientelístico.

- Que rende votos.

- Muitos votos. Esse é um problema secular. O que é o clientelismo? É a indistinção entre o público e o privado, o uso da coisa pública por interesses privados. É uma rede que pega a cúpula e pega lá embaixo. Na cúpula, são os grandes contratos, as jogadas com grandes empresas e políticos. Embaixo, são os R$ 50 trocados com enorme poder de voto. O brasileiro, assim, está vendendo seu voto? Age incorretamente? Pode ser incorreto dentro da concepção do sistema representativo, mas se for analisada a perspectiva pessoal, está correto. Ele não tem dinheiro para comprar elementos básicos. Entra aí o drama da pobreza e da desigualdade. 60% desse eleitorado têm o primeiro grau e alto nível de pobreza. Calculam-se 50 milhões de miseráveis. São mais ou menos as mesmas pessoas. Todas com um grau de informação e com uma necessidade grande de sobrevivência.

- Não há o risco de se juntar no mesmo bolo política pública e clientelismo?

- É impossível separar. Com isso, vai-se dizer que não deve haver Bolsa Família? De jeito nenhum. Mas a corrupção está na base, nas prefeituras. Vimos muitos prefeitos fazendo do Bolsa Família uma máquina clientelista fantástica. É difícil montar um esquema de controle eficaz. É muito fácil criticar a corrupção no Brasil. O problema é resolver a máquina. E as condições sociais que a favorecem.

- Falta ao país, portanto, uma rediscussão sobre a organização do Estado, que permite também a existência dessa máquina.

- Há um problema na base da democracia. Se você não controla vereadores e prefeitos, não controlará o presidente. É por aí que deveria começar. Há um problema cultural a resolver. E se faz isso com educação. De que adianta reclamar que o político está roubando dinheiro? A frase que mais ouço atualmente é: ''Estou estarrecido''. Isso não leva a nada. Essa indignação moral faz avançar muito pouco. Essa cidadania só mudará quando mudar nossa concepção sobre dinheiro público e privado. A base da democracia anglo-saxônica é esta. Baseia-se num contrato de pagamento e recebimento. Eu pago e o governo me dá de volta. Esse dinheiro não é do governo. É meu. Quem está roubando dinheiro público, rouba a mim mesmo. Se houvesse essa mudança de mentalidade já ocorreria um grande avanço. Há um desajuste social, político e cultural, que levará muito tempo para ser resolvido.