Título: Restos de vidas
Autor: Waleska Borges
Fonte: Jornal do Brasil, 31/07/2005, Rio, p. A23

Um apartheid social se esconde por trás do impasse sobre o destino das 8,5 mil toneladas de lixo despejadas diariamente no aterro sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias. O anúncio do fim das atividades é esperado com apreensão por pelo menos 5 mil pessoas que tiram sustento do aterro. Além da incerteza do futuro, elas sofrem com a miséria e o abandono do entorno do lixão. Para sobreviver, catadores e comerciantes dependem do garimpo de latinhas, plástico, papel e metais do antigo lixão, que, segundo a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), deveria ter sido fechado no ano passado. O fim do aterro é visto como um fantasma, principalmente, para os cerca de 3 mil catadores de materiais reciláveis, como gostam de ser chamados, que moram na área pobre do aterro. Eles trabalham cerca de 12 horas por dia e ganham R$ 30, em média. Cada um tem seu horário. Se o trabalho é duro, os momentos de descanso também não são confortáveis. Nas ruas das comunidades conhecidas como Chatuba, Qui-papá e Favelinha não existem asfalto, água encanada e esgoto. A maioria das casas foi construída com pedaços de madeira sob um chão de barro batido. Para afastar a umidade, são improvisados tapetes e pedaços de plásticos.

- São dois bairros num só. Tem a área nobre, que é da Cohab. Lá, os moradores não trabalham no aterro e acham que nós somos xepeiros - conta José Carlos Lopes, conhecido como Zumbi, 32 anos, 20 deles trabalhando no aterro de Gramacho.

A área nobre e a pobre do bairro são separadas por menos de um quilômetro. A diferença entre as duas partes fica clara quando há divisão de asfalto e barro na Rua Aracati. Integrante da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano Jardim Gramacho (ACAMJG), Zumbi conta que os catadores também sofrem preconceito dentro dos ônibus. Segundo ele, por pressão dos moradores da''área nobre'', a empresa de ônibus local implantou duas linhas com pontos diferentes.

Na área mais carente, muitos moradores contam com a solidariedade da dona-de-casa Maria Bento Severino, 60, chamada carinhosamente de Tia Maria. Há 42 anos no local, desde que chegou da Paraíba, ela é uma das poucas pessoas que tem caixa d'água em casa. Apesar da conta de R$ 70, Maria deixa as cisternas abertas e os vizinhos enchem os galões para cozinhar, beber e tomar banho.

- A rua não tem asfalto nem esgoto. Mesmo assim pago R$ 1.200 de IPTU por dois terrenos - reclama Maria.

Nas ruas, as crianças soltam pipa. As muito pequenas brincam descalças. Elas imitam o trabalho dos pais. Entre os adolescentes, pouco se fala em sonhos. Apesar de proibida a entrada dos menores, sempre há uma maneira de burlar a lei. Alguns se escondem na barrica dos pais (barril de plástico onde se põe o material reciclado) e outros entram pelo mangue que cerca o aterro. A área de 1,3 milhão de metros quadrados tem 27 anos de uso.

- Gosto daqui porque arrumo dinheiro. Compro roupa e às vezes dou para minha mãe - conta Leandro da Silva Oliveira, 13 anos, que cursa a quarta séria e sonha em ser motorista.

Outros dois adolescentes que também trabalhavam, na tarde de terça-feira, não tinham respostas sobre o futuro: ''Ah, ele quer mesmo é ser bandido'', brincava um menino referindo-se ao amigo. Assim como qualquer área carente, a comunidade não está livre do tráfico de drogas. Por esta razão, muitos pais sentem-se mais tranqüilos quando os filhos estão trabalhando no aterro. Algumas crianças estão atrasadas no ano escolar.

- Por causa da lama, quando chove as crianças não vão à escola. A comunidade precisa de ajuda. Ao contrário do que ocorreu com outros lixões fechados, quando o aterro sair de Gramacho para Paciência, não teremos a migração de catadores. Sabemos que a nossa entrada será proibida - justifica Alexandre Freitas, 28, um dos diretores da associação.

Enquanto as melhorias de infra-estrutura não chegam, os moradores do entorno do aterro convivem com a poeira levantada pelas centenas de carretas que chegam a todo momento. No céu, os urubus sobrevoam e acompanham cada despejo. Nas ruas, porcos, cavalos e cachorros dividem o mesmo espaço. As doenças respiratórias e alergias também já fazem parte do dia-a-dia. Ratos, baratas e lacraias são vistos tanto no aterro quanto nas casas.

- A cada vistoria, a Comlurb dá mais seis meses de vida para o aterro. Não sabemos se ele vai fechar hoje ou amanhã - preocupa-se Zumbi, uns dos poucos que pagam a autonomia e o INSS. ''Não vou ser novo para o resto da vida'' justifica.

Do material recolhido do aterro, os atravessadores, que são os donos de depósitos - estima-se que sejam cerca de 50 na região - pagam desde R$ 0,10 para o quilo do papelão até R$ 5 pela mesma quantidade de cobre. Nas redondezas negocia-se de tudo: uma garrafa de gelo custa R$ 0,50, o banho quente, R$ 1,50; e o frio R$ 1. Os barracos de madeiras também são negociados. Segundo o catador Elias Madeira dos Santos, 20, ele comprou sua casa de um cômodo por R$ 500.

Há dois anos, Elias divide o espaço, com menos de dois metros de altura e dois metros quadrados, com a mulher, Luciana Rodrigues, da mesma idade. Apesar de modesta, a casa é decorada com véu azul - ''para espantar os mosquitos'' -, abajur, ursos de pelúcia. Há também uma televisão, um rádio e um fogão. O banheiro fica do lado de fora, mas um balde é usado como vaso. Assim com outras dezenas de catadores, Elias também guarda um passado triste. Há oito anos, ele perdeu os pais, mortos por bala perdida quando andavam de carroça em Vilar dos Telles. Ele conta que acorda cedo e vai para a rampa, local onde as carretas despejam o lixo. Para não se cortar e evitar doenças, ele usa várias meias, tênis e luvas.

- Cada catador dá o seu jeito de se proteger. Prendo as meias com borrachinhas - conta Elias, que considera o trabalho provisório. - Trabalho aqui por necessidade. Além de ganhar minha merrequinha, aproveito alguns alimentos achados em lata de azeite, óleo, Nescau e o arroz.

Bem articulados, Alexandre, Zumbi e Sebastião Carlos dos Santos, 26, presidente da ACAMJG, contam que os catadores vêm se organizado para lutar por seus direitos diante o risco do fechamento do aterro. Eles propõem um programa sócio-ambiental de coleta seletiva com a implantação de um Centro de Triagem.

- Não somos a favor da manutenção do lixão. A coleta seletiva reduz o volume de lixo e dá uma vida descente ao catador - explica Alexandre.