Título: O Estado e os negócios
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2005, País, p. A2

Por mais que saibamos que as sociedades são imperfeitas, e que a política não é ofício de santos, as revelações das CPIs e da Comissão de Ética da Câmara nos assustam. Não se trata só das acusações e confissões de atos ilícitos, mas da evidência de que, no Brasil, como em alguns países, o Estado se encontra ocupado em cuidar dos negócios privados. O ministro José Dirceu se defendeu, e bem, ontem (pelo menos até a hora em que redigimos esta coluna) das acusações que lhe faz Roberto Jefferson, mas confessou haver recebido empresários em seu gabinete, entre eles os diretores do Banco Opportunity. Em uma sociedade política como deve ser, a Presidência da República não deve cuidar de negócios. Os negócios são tratados nas instâncias próprias e, quando muito, se houver relevância, nos ministérios.

As compras, encomendas de bens e de serviços devem ser feitas de maneira clara, transparente, e impessoal, mediante editais e o julgamento público das propostas.

Desde os romanos, negócios e política se misturam, e a oficialização dessa promiscuidade, com os dois triunviratos, abriu caminho para o declínio da República, com o assassinato de Júlio César, a ascensão de Augusto e a longa agonia do Império. Nos Estados Unidos, que são o império hegemônico de hoje, os empresários exercem diretamente o poder e o empregam para garantir seus negócios mundiais. Assim, podem argumentar alguns que essa é prática corrente. Mas devemos trabalhar para que não continue a ser: os Estados surgiram exatamente para sofrear a ganância dos opressores e exercer a justiça, em favor da paz social.

Quanto mais os governantes estiverem afastados dos homens de negócios, melhor para todos. Não só o depoimento de José Dirceu como todas as revelações destas últimas semanas confirmam que o Estado continua à mercê de empresários e de seus lobistas, tal como ocorria no governo passado. Os gabinetes do poder nunca se encontram abertos para a viúva que busque o empenho presidencial a fim de que possa receber logo a pensão deixada pelo marido e não tenha que esperar meses; nunca se encontram abertos para os desempregados que querem salvar os filhos da fome ¿ mas jamais se fecham para os diretores das grandes empresasmultinacionais, que aqui conseguem tudo, de terrenos de graça a isenções fiscais e financiamento a juros subsidiados, quando não empresas inteiras de presente. O processo de privatizações e da desnacionalização das empresas brasileiras, tal como se deu, é das mais graves violações do contrato social republicano ¿ e isso um dia será investigado.

Essa situação nos adverte contra as chamadas parcerias público-privadas, que a equipe econômica inventou e quer efetivar. A parceria entre o público e o privado se faz de outra forma: com o setor privado pagando seus impostos e o setor público garantindo a iniciativa econômica, nos termos da lei. Ou, então, com as sociedades de economia mista, sob o controle do Estado e a participação acionária aberta aos cidadãos, até certos limites, como ocorria no passado. Os grandes exemplos desse modelo são a Petrobrás e a Companhia Vale do Rio Doce. Exemplos que estão sendo seguidos, com o êxito que se conhece, pela China moderna.

Até o momento, as comissões parlamentares de inquérito não conseguiram levar culpados aos tribunais. Uma delas, a da lavagem de dinheiro, pelo Banestado e outros bancos, foi interrompida, apesar da confessada cumplicidade do Banco Central nas transferências ilegais. Esta é uma das CPIs que devem ser reabertas, como se está reabrindo a da compra de votos para a emenda da reeleição.

Espera-se que a nação, que vem assistindo entre envergonhada e revoltada, as revelações de subornos, desvio de recursos públicos, mediante o superfaturamento dos contratos, os gastos exorbitantes de algumas autoridades, não venha ¿ com sua grande paciência ¿ permitir que os responsáveis fiquem impunes. Não pode haver distinção entre uns culpados e outros.

Como advertiam os antigos, que pereça o mundo, mas se faça justiça.