Título: Legitimidade ou instabilidade
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2005, Internacional, p. A10

O trabalho de organizar eleições no Haiti é grande e está atrasado. O adiamento do pleito - municipal, em outubro, e parlamentar e presidencial, em novembro - já traria de volta uma certa instabilidade política ao país caribenho, por não cumprir a data constitucional de 7 de fevereiro marcada para a posse do novo governo. Mas seguir com o calendário a despeito da falta de segurança e da pouca participação popular e partidária nas urnas pode ter consequências ainda mais graves: a contestação da credibilidade do resultado e a falta de legitimidade do governo eleito. O alerta é do International Crisis Group (ICG), que divulga hoje relatório questionando se o Haiti pode realizar eleições gerais ainda este ano. O JB teve acesso ao documento com exclusividade.

- É mais importante ter um processo no qual os haitianos se sintam representados do que eleições só para cumprir o que está no papel - defende Alain Deletroz, diretor do programa para América Latina e Caribe do ICG.

O especialista lembra que a administração interina de Boniface Alexandre foi imposta pela ONU há um ano e meio, após a renúncia do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, depois de uma convulsão social.

- O governo atual não é percebido como a expressão da vontade do povo. Se os haitianos não respaldarem também o próximo, o país vai implodir. E dentro de dois ou três anos o Haiti pode estar sob administração do Conselho de Segurança da ONU, se tornar um protetorado internacional, como Kosovo - compara.

O principal problema, aponta o relatório do Crisis Group, é o atraso no preparo do pleito. O Comitê Eleitoral Provisório (CEP) precisa terminar até meados de agosto o recadastramento dos eleitores, para diminuir a chance de fraude. Mas até agora, apenas 870 mil renovaram o registro - 1/5 do total. E nenhum deles já recebeu o novo documento. A campanha eleitoral local está marcada para começar no final de agosto. No entanto, nenhum dos partidos conseguiu cumprir os requerimentos para inscrever candidatos. ''O CEP terá que estender o prazo para registro ou permitir que qualquer partido participe do processo'', avalia o texto.

Nesse caso, a agremiação de Aristide, o Lavalas, poderia entrar no pleito, sem que os membros moderados tivessem que romper com os radicais, como exige atualmente o CEP. A maioria dos membros luta pela volta do ex-presidente, exilado na África do Sul.

Segundo o ICG, o apoio da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA) na organização das eleições tem sido lento, em grande parte por causa das manobras políticas do CEP. O comitê ainda não determinou as regras para financiamento de campanha, nem os procedimentos de apelação de resultado. Além disso, até o fim de julho, vários postos de recadastramento eleitoral estavam fora de funcionamento.

A alternativa, se todas as medidas não ficarem prontas até o final de agosto, é adiar pelo menos o início da campanha.

- A comunidade internacional é quem tem a carta mais forte nas mãos e deve mandar uma mensagem clara ao CEP: não vai aceitar marginalização de setores da sociedade no processo - afirma Deletroz - É crucial, para que os haitianos percebam o comitê como uma entidade neutra e imparcial, que não privilegia um ou outro partido.

Se não for suficiente, também deve-se prorrogar a posse do eleito.

- Prolongar a administração interina por um mês não gera instabilidade. Mas não recomendo um prazo maior do que dois meses - diz o diretor do renomado grupo de análise política internacional.

De qualquer maneira, defende o ICG, as eleições no Haiti não podem ser encaradas como o capítulo conclusivo da transição, que permita a saída da presença internacional e o desvio de atenção dos países doadores.

- A comunidade internacional deve permanecer até que a refundação das instituições termine, o que deve levar pelo menos mais dois anos - estima Deletroz.

O diretor adverte que esta é apenas a construção da base para que o país mais pobre das Américas possa ser auto-sustentável:

- Os doadores Estados Unidos e União Européia não podem se enganar. A cooperaçãopara o desenvolvimento do Haiti é um projeto de 15 anos.