Título: Diferenças sem divergências
Autor: João Bernardo Caldeira
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2005, Caderno B, p. B1

Os irmãos pernambucanos Vasconcelos - Erasto e Juvenal, o Naná - têm em comum a linguagem da percussão. Ambos se expressam através do ritmo, mas não necessariamente seguem a mesma cadência. Naná correu mundo, foi um dos responsáveis pelo status de arte da percussão nativa no planeta. Erasto aprofundou-se numa sintaxe mais ligada à sua terra. As diferenças - que não chegam a divergências - podem ser observadas nos lançamentos recentes de Erasto, Jornal da palmeira (Candeeiro Records), e Naná, Chegada (Azul Music).

Ambos são discos autorais, embora o de Naná tenha mais parcerias e adaptações de obras alheias. Por outro lado, Erasto mostra-se como poeta e declama seus escritos, como no bucólico Azulão. ''O passarinho da canção/ quando canta pinta silga/ acompanhado de patativa/ azulão'', descrevem os versos que culminam numa curiosa onomatopéia do canto das sabiás. ''A primeira faz cunhé, cunhé, cunhé/ a segunda: sem revolver, sem revolver/ e a terceira: atira, atira, atira''.

Erasto arrisca-se bem mais como cantor, mesmo que não alcance notas mais altas, como na exaltação Recife (''dançamos o frevo quente/ dançamos a ciranda da gente''), cevada por rabeca e cello. A singeleza de seus temas, com janelas para o onirismo, absolve as derrapadas vocais. Jornal da palmeira cativa pela impregnação telúrica (Mauricéia, O baile Betinha, Adivinhação). Erasto move-se entre o coco, o maracatu, celebra o mestre do frevo (Capiba disse que é pra já), invade a quadrilha junina (Adivinhação) e sincopa funk na cifrada Maranguape (''vou dar de cano de ferro/ vou botar sola/ vou deixar molinha''). Tem até jogo de capoeira (Guia de Olinda), onde Erasto tripula berimbau e jarra. Na única faixa instrumental, Ceci, Erasto, que apenas assina como autor, aproxima-se do samba, balizado por cavaquinho e bandola. Flauta e sax são soprados por Cesar Michiles, um dos alicerces do disco de Naná, ao lado de Lui Coimbra (charango, cello e violão), Chiquinho Chagas (piano, teclados, acordeon), Lucas dos Prazeres (percussão).

Chegada tem um espectro mais amplo. Viaja do folclore da África do Sul, na coleante Tundekagô ao erudito carioca Villa-Lobos em O canto do cisne, levado com tambores soturnos sob cello enevoado. Lui Coimbra contribui com o maracatu estilizado Pra lá da casa de Naná. À dupla Sebastião e Benedito Biano, da banda de Pífanos de Caruaru, cabe a abertura dos trabalhos, em Alvorada, que o grupo lançou num disco de 1979 do extinto selo seleto Marcus Pereira. Mas as flautinhas do ramo ponteiam mesmo é na seguinte, Cascudo (As sereias de Caruaru) (César Michiles/ Roque Neto). Naná reforça o pulso afro de seus tambores diversificados com um vocalise em segundo plano que acopla melodia ao ritmo. Seu disco - como o do mano Erasto - foge ao típico solo de percussionista. Além do tema de Villa-Lobos há outros momentos camerísticos no sanfonado Vôo 2364 (Chiquinho Chagas). Rola até uma imersão sinfônica em Zumbi. A análise dos CDs da dupla converge para um clichê inevitável: os irmãos Vasconcelos trazem a percussão da cozinha para a sala. Ou da senzala para a casa grande.