Título: De blindagens e símbolos
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 05/08/2005, País, p. A2

Com a desculpa de que a CPI dos Correios não pode desviar-se de seu foco principal, começa a articular-se a blindagem do governo de Fernando Henrique Cardoso. Temem os amigos do presidente que, com as investigações chegando a Daniel Dantas, venha à luz do dia o processo de privatização das telecomunicações, de que participaram os fundos de pensão e o BNDES. Se isso ocorrer, na certa serão rediscutidas outras privatizações, como as do setor elétrico e da Cia. Vale do Rio Doce. Além das suspeitas (fundadas ou não) de que houve o pagamento de comissões a pessoas envolvidas na alienação do patrimônio público, há a grave questão da soberania nacional. O Brasil perdeu o controle de atividades estratégicas, como as das telecomunicações, ficando privado de centros de geração de tecnologia autônoma. Até mesmo a revisão de turbinas das aeronaves, civis e militares, foi entregue a estrangeiros. Desde a eleição do presidente Collor, o país entrou em acelerado processo de erosão de seus valores. Itamar tentou estancá-lo, tendo em vista suas idéias nacionalistas e o reconhecido respeito à coisa pública, mas cometeu o pecado de fazer do paulista o sucessor. Fernando Henrique conseguiu o apoio de grande parte dos meios de comunicação para a tarefa de destruir o Estado, em nome de serôdio laissez-faire, e, mediante a operosidade de Sérgio Motta, manter maioria parlamentar na coleira. Até o seu governo não havia notícias de compra de votos parlamentares em dinheiro vivo. Havia a prática, comum a muitos parlamentos, da inclusão de obras públicas de interesse de bancadas regionais no Orçamento nacional, costume a que os americanos dão o nome de pork barrel. Essas obras geralmente eram planejadas por empreiteiros interessados, e incluí-las no Orçamento era o primeiro passo para obtê-las. O processo não era imune à propina individualizada, como demonstra o episódio dos anões do Orçamento. Grande parte do dinheiro dos contribuintes escorria e continua a ser jogado fora, na execução de obras desnecessárias e superdimensionadas. Muitas delas, privadas de recursos que lhe dêem continuidade nos governos seguintes, desabam em ruínas. Em nosso caso e não no americano, cujo Orçamento é impositivo, essa banha de porco não se distribuía senão com a cumplicidade do poder executivo, que sempre a usou a fim de garantir maioria parlamentar.

A CPI que apurou os desvios dos chamados anões do orçamento teve o apoio do presidente Itamar Franco. O governo de seu sucessor começou com denúncias de que dinheiro vivo estava sendo usado para comprar votos necessários à emenda da reeleição e à alienação dos bens nacionais. Logo depois soube-se do "convencimento" de convencionais do PMDB, a que votassem contra a eventual candidatura de Itamar na disputa presidencial em 1998.

O PT não inventou a roda. Da mesma forma que a equipe econômica continua a mesma política neoliberal de Malan e associados, o partido considerou que não poderia governar sem sujar as mãos no pagamento aos parlamentares. O que está assustando os observadores é o amadorismo dos operadores de hoje. Como se sabe, Valério empregou o mesmo processo (dar contratos futuros como garantia de empréstimos) nas eleições mineiras de 1998. O PT sabia disso e, se não foi procurado por Valério, procurou-o. O galho petista nasceu de um broto da mesma árvore.

Não é este governo que se encontra em crise; não se trata de uma crise no sistema legislativo. É a República que está em crise. E para que possamos refundá-la, é necessário demolir a estrutura política até os alicerces, mediante a elaboração e aprovação de novo contrato social, ou seja, nova Constituição.

O povo não aceita que se limite a investigação às irregularidades nos serviços de correios. Nem adianta a esperança de que eventual impeachment do presidente encerre a crise e poupe o PSDB de São Paulo. Não será fácil retirá-lo do Planalto, antes do fim de seu mandato. Lula não é Luís Inácio. É um símbolo.