Título: Futuro do presente
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 07/08/2005, Opinião, p. A10

O Partido dos Trabalhadores encontra-se na iminência de uma nova guinada histórica - semelhante às feições inéditas adquiridas no desembarque ao poder, em janeiro de 2003. De um lado, será preciso expurgar em definitivo personagens nebulosos envolvidos nas mais ruidosas denúncias de corrupção dos últimos anos, entre os quais um dos pivôs da crise atual: o ex-tesoureiro Delúbio Soares, que não acompanhou o gesto do ex-secretário geral Silvio Pereira, desfiliado voluntariamente do partido. Por outro lado, o PT se confrontará com mais uma onda de dissidências, dessa vez conduzida por um grupo de 19 parlamentares da chamada ''esquerda'' da legenda - um gesto que esfacela ainda mais um antigo patrimônio petista: a coesão partidária. Em comum, a insatisfação com os rumos éticos do PT, capazes de ampliar os riscos de um lamentável retrocesso institucional no país. Tais mudanças constituem mais um capítulo de uma história de radicais mutações. Os petistas, sublinhe-se, formularam uma das mais singulares e positivas experiências da história política e partidária brasileira. O partido, afinal, combinou características especialmente virtuosas. De um lado, reuniu lideranças de origem autenticamente popular, com uma orientação marcadamente ideológica, revelada no enfático discurso de compromisso social e na adesão vigorosa a princípios éticos. O PT conjugou esses marcos com a opção de tornar-se viável eleitoralmente, aderindo ao jogo democrático - o que o conduziu da modesta votação de Lula da Silva na eleição para governador em 1982 aos 53 milhões de voto para presidente vinte anos depois. A singularidade da aparente consistência ideológica com a disposição para o embate das urnas não impediu, contudo, de descolorir-se programática e moralmente, a ponto de o partido não mais saber o que é de fato.

Trata-se de uma má notícia para um país que, até a chegada do PT, nunca chegou a produzir um partido de verdade. Na República Velha, por exemplo, o hegemônico Partido Republicano, do qual saíram todos os presidentes até a Revolução de 1930, não produziu nada que se pudesse chamar de programa, muito menos se preocupou em criar liames que lhe conferissem consistência nacional. Tratava-se de uma concentração de caciques regionais interessados na preservação do poder em suas capitanias. Entre a redemocratização de 1946 e o surto liberticida desencadeado em 1964, alguns projetos de partido morreram na primeira infância. O PTB esboçou um trabalhismo tropicalizado. A UDN começou a defender sem rubores a modernização do capitalismo quando o autoritarismo chegou. O regime militar golpeou uma vida partidária robusta. Até o PT surgir com os novos ventos democráticos.

Entre os personagens que deixarão o partido e os novos aliados com os quais compartilham o poder, o PT seguirá trilhas diversas, que desembocarão na formalização definitiva de sua mudança programática - extensão das boas práticas econômicas evidenciadas no governo Lula. Será fundamental o abandono de fantasias, incluindo o indefinido socialismo democrático que balizou a existência do partido. O caminho do PT - bem como do PSDB - parece inevitável: a revisão da social-democracia, retomando as feições daquela que encantou a Europa na metade do século 20, capaz de promover resultados sociais efetivos mesmo num ambiente economicamente restritivo. Uma tarefa monumental, mas insuficiente. Reconhecida a natureza ética da crise, ao PT convém trabalhar para recuperar seu capital simbólico, removendo o excesso de realismo que triturou os sonhos de um partido virtuoso. Hoje, pena, a realidade petista resume-se a uma difusa sombra do que se pretendia ser.