Título: Imprensa africana - desaparecida em ação
Autor: Wole Soyinka
Fonte: Jornal do Brasil, 07/08/2005, Internacional, p. A15
Na maioria dos países da África, o desafio de repórteres, editores e leitores ultrapassa a luta pela liberdade de imprensa e envolve sua própria sobrevivência. Subjugados pelas várias ditaduras que a Nigéria já teve, por exemplo, diversos jornalistas foram obrigados a enfrentar um rito de passagem que muitos preferem esquecer: assédios rotineiros, espancamentos, torturas, acusações forjadas e condenações absurdamente longas. Entre as inúmeras vítimas, talvez o caso mais bizarro tenha sido o do jovem jornalista chamado Bagauda Kaltho. Seu corpo foi encontrado no banheiro de um hotel na cidade de Kaduna com o que restou de uma bomba após uma explosão que ninguém ouviu. Mesmo assim, estava estirado lá, e com uma cópia do meu livro The Man Died (¿O Homem Morreu¿, em tradução livre) a seu lado.
A acusação, reforçada pelo regime no poder então, era a de que Kaltho era um recruta meu que se explodiu enquanto preparava a próxima bomba em sua campanha de terror contra a ditadura de Sanni Abacha. Essa invenção irracional só foi totalmente desmascarada após a morte de Abach e da avalanche de confissões de policiais que, de fato, cometeram o crime.
A imprensa reagiu com inteligência, não se importando com as baixas. Repórteres adotaram táticas de jornalismo clandestino, no melhor estilo dos samizdats do Leste Europeu (N.E.: publicações clandestinas produzidas durante as ditaduras comunistas). Quando a polícia invadia um lugar, cópias surgiam de outros locais, ainda seguros, para serem vendidas nas ruas por jovens kamikazes que circulavam por entre os carros oferecendo seu contrabando subversivo. Não importava que esses jovens guerreiros, alguns com sete ou oito anos de idade, fossem freqüentemente presos, espancados e trancados nas cadeias por semanas. Às vezes, por meses. Quando saíam da prisão, voltavam a sua perigosa atividade.
Mas a Nigéria não é o exemplo mais nobre do imenso poder da mídia. Essa honra pertence a outra história, a outra região. Se considerarmos que os pilares da imprensa são o foco, a mobilização, o comprometimento, a organização e a capacidade de produzir impacto, então, os louros vão para o papel sinistro que teve ao preparar o terreno para o massacre de Ruanda, em 1994, e ao induzir, acompanhar e alimentar o fervor dos genocidas assim que o extermínio dos tutsis começou. Essa experiência ainda é, até hoje, considerada uma lição que deve nos trazer de volta à razão, uma vez que nos apresenta a mídia no papel de agressor, em contraste com seu tradicional papel de vítima.
Esses acontecimentos nos são familiares demais para qualquer nova discussão. O que importa agora é o papel que a mídia do resto da Africa deveria ter assumido e as questões que tudo isso provoca sobre sua capacidade de atuar como agente fiscalizador.
Não são muitos os africanos, mesmo entre aqueles que são reconhecidamente cidadãos do mundo, que ouviram falar alguma vez na vida da Rádio Milles Collines, o instrumento mais eloqüente do genocídio de Ruanda. É doloroso perceber que eventos diretamente ligados aos africanos cheguem a público, em sua maior parte, graças à intervenção da imprensa estrangeira. Foram os jornalistas de fora que trouxeram à tona a cumplicidade de determinadas autoridades com um crime que estava sendo cometido contra a humanidade.
Também foi a imprensa estrangeira que esmiuçou o fracasso dos Estados Unidos, com agentes em campo cuja inabilidade de classificar de genocídio o que acontecia lá levou a uma reação mundial equivocada, contaminada. Em uma análise simplista, a mídia africana falhou na missão de ultrapassar suas fronteiras e atuar como a voz do continente no contato com o mundo.
A reação da mídia africana aos massacres e estupros em Darfur tem sido igualmente calada. Mais uma vez, os leitores africanos têm sido enganados, dependendo sempre da imprensa estrangeira para perceber a enorme importância do que está acontecendo
A sociedade civil africana, cujo porta-voz é a imprensa, não pode se esquivar da obrigação de repreendê-la pelo fracasso ao exigir que seus líderes salvem os cidadãos do continente. Da Libéria ao Congo, o contexto atual do continente africano exige que a imprensa não atue apenas como um fiscal, mas como uma espora. É para imprensa que o continente deve olhar como um exemplo de solidariedade.
Essa solidariedade não deveria ser compreendida como algo a ser exercido somente em tempos de convulsão social. O recurso barato de sacar distorções como ¿interferência externa¿, ¿jornalismo hostil¿ e ¿porta-voz dos imperialismo¿ ¿ tão adorados por regimes corruptos e/ou repressores ¿ não são reconhecidos como sendo úteis em causa própria nem mesmo por aqueles que apelam para tal saída.
Infelizmente, em situações de repressão como, por exemplo, a que se vê em Zimbabue, os jornalistas do Terceiro Mundo tendem a procurar suas deixas nas condutas dos líderes nacionais e cerrar fileiras com os elefantes desgarrados do continente. O reflexo disso tudo transformou o Zimbabue em um país praticamente desprovido de imprensa, com apenas os jornalistas estrangeiros tentando responsabilizar o presidente Robert Mugabe por tudo.
A imitação parece ser uma marca registrada dos tiranos em seu exercício de poder. Assim, a ausência de solidariedade entre os jornalistas do continente e o próprio povo africano criou um vácuo perigoso. Hoje é a imprensa do Zimbabue que está com a arma na cabeça. Amanhã? Devemos todos sempre ter isso tudo em mente, uma vez que a ambição por territórios sempre anda de mãos dadas com a lógica do censor. (Project Syndicate)