Título: 'Sou uma alternativa para o Brasil'
Autor: Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 08/08/2005, País, p. A3

O próprio admite. Não é um político profissional. É cerimonioso, formal, desajeitado. Fala com sotaque de estrangeiro. Um estranho no ninho nos palanques brasileiros, dotado de credenciais aparentemente díspares do perfil de um candidato em eleições habitualmente emocionais. Pois o cientista social Roberto Mangabeira Unger quer ser candidato à Presidência da República no próximo ano. Vai enfrentar com o senador Jefferson Perez a preferência do PDT. Para tanto, tem percorrido o Brasil para defender suas idéias, certo de que o desconhecimento do mensageiro e de sua mensagem não é problema. Diz ter sido o escolhido de Leonel Brizola, meses antes de este morrer, em junho de 2004. Está convicto de que o Brasil deseja uma alternativa ao que considera um modelo seguido por tucanos e repetido por petistas. Professor da Universidade de Harvard, de onde está licenciado, este carioca de 57 anos garante que sua candidatura, caso se confirme, representa uma alternativa confiável, moderada, realista e, por isso mesmo, transformadora. Já apareceu na tevê, referendado pelo cantor e compositor Caetano Veloso. Como diretriz, um ¿projeto produtivista nacional e democratizante¿, capaz de romper o que chama de ¿subordinação do país aos interesses financeiros¿. Com novo livro chegando às livrarias (Necessidades falsas , lançado pela Boitempo, ensaio introdutório a uma de suas obras teóricas), Mangabeira Unger garante que o palanque não será uma extensão de sua teoria. Mas os elos entre ambos parecem evidentes, conforme se vê a seguir. ¿ Por que ser candidato à Presidência da República?

¿ Esse meu desejo vem das minhas experiências no engajamento na vida pública brasileira e das minhas conversas constantes com Leonel Brizola. O que vem ocorrendo agora no Brasil fortaleceu meu dever de postular essa candidatura no meu partido, o PDT. O Brasil precisa de alternativa ao projeto ao qual se converteram PSDB e PT. Quer uma alternativa e não a tem. Portanto, essa é uma tarefa que, por mais difícil que seja, é inescapável.

¿ Quais são os indícios de que a população deseja uma alternativa? O presidente Lula ainda é visto como o favorito em 2006. Depois aparecem tucanos.

¿ A população votou maciçamente em 2002 por uma mudança de rumo no país. Há uma convergência de forças políticas dominantes rumo a um projeto financista-negocista que subordina os interesses do trabalho e da produção às exigências da confiança financeira. Que vê a política social como estratégia para dourar a pílula do modelo econômico. Que legitima acertos corruptos entre poder e dinheiro. Todos esses fatores têm o efeito de negar ao povo brasileiro o espaço republicano para a virada econômica e social. O Brasil tem hoje um juro real muito superior à taxa média de retorno dos negócios. Com isso, toda atividade produtiva é, a rigor, irracional. Em segundo lugar, temos um modelo de desenvolvimento baseado no aviltamento do trabalho e do salário e na condenação de 70% dos nossos trabalhadores ao mercado informal. Há mais de 40 anos a participação do trabalho na renda nacional decresce. A terceira característica, esta sim me deixa esperançoso: é o surgimento de uma multidão empreendedora, que está construindo uma nova cultura de auto-ajuda e iniciativa. A grande revolução brasileira será instrumentalizá-los. Para tanto, é preciso ter um Estado que descortina um outro caminho e que não esteja no bolso dos endinheirados. É a grande tarefa para uma candidatura presidencial alternativa.

¿ Mas além das dificuldades programáticas, há uma dificuldade pessoal. O senhor é um intelectual, desconhecido, nunca exerceu mandato...

¿ São duas ordens diferentes de dificuldades. O caminho programático me parece muito claro. Há um conjunto de iniciativas singelas e práticas que mudaria dramaticamente a vida dos brasileiros. Mas, para chegar lá, o Brasil precisa vislumbrar uma proposta nova. É muito difícil tornar conhecidos novas mensagens e novos mensageiros no sistema partidário e midiático. Esse sistema estabelece uma barreira muito densa em torno do poder central. Por outro lado, quando se fura essa barreira, tudo é possível. Nosso eleitorado está à busca da porta da saída nessa escuridão que é a política brasileira. Quando as muralhas desabam, desabam com rapidez espetacular.

¿ E qual sua estratégia para derrubar essa muralha?

¿ A primeira tarefa é consolidar a candidatura no meu partido e, a partir daí, construir uma aliança. Minha segunda prioridade é começar a debater em todo o país, propondo, discutindo, revendo o conjunto de ações necessárias para construirmos um novo rumo. Por isso estou andando pelo Brasil, debatendo com as organizações de classe média e dos trabalhadores, ocupando espaços na mídia local, que constato estarem inteiramente abertos, ao contrário dos espaços da mídia nacional, ocupados com os escândalos de corrupção. A terceira prioridade é recrutar um quadro de jovens ativistas. Por enquanto, vejo frustração, desencanto, desilusão com a política.

¿ Mas essa desilusão com a política não é nova.

¿ Não é nova, mas agora se agrava. E tenho insistido que não podemos nos dar ao luxo de nos entregar a esse desencanto. Tudo no país depende de encaminhamento de soluções coletivas para resolver problemas coletivos. Portanto, precisamos desesperadamente de política. Ao lado desse desencanto, há um enorme idealismo frustrado. Por isso constato a existência de centenas e centenas de jovens que aparecem querendo trabalhar nessa iniciativa. Não menosprezo as dificuldades, mas não subestimo a teimosia com que o Brasil procura uma alternativa. Por isso estou disposto a persistir.

¿ As denúncias de corrupção tiram o presidente Lula do páreo?

¿ Não. Estou certo de que, se ele for candidato, será forte. E é natural que seja assim num país tão vulnerável quanto o nosso e dada a imensa esperança que a candidatura Lula depositou no povo brasileiro. É natural que a população relute em abandonar essa esperança nele e no governo dele.

¿ Lula fala bem para as massas, o senhor. não. Ele é conhecido, o senhor não. Como lidar com isso?

¿ Muitos que simpatizam com minha candidatura me tratam como um Quixote. Dizem, de forma benevolente, que vou ajudar a qualificar o debate. Eles não entendem como funciona a eleição presidencial. É errado imaginar que uma candidatura como a minha esteja condenada apenas a desempenhar o papel de qualificador. O difícil é tornar-se conhecido. Mas, tornando-se conhecido, com um projeto consistente e confiabilidade moral, é possível mudar o quadro em muito pouco tempo. Você falou no aspecto do discurso. Ele tem que ser emocional. Mas não pode contradizer a proposta programática. O povo precisa, nesse lusco-fusco de mentiras, identificar quem está dizendo a verdade.

¿ No governo, Lula contradisse seu discurso de campanha?

¿ Houve em 2002 uma imensa confusão entre retórica e pensamento. Constatamos depois que eles nunca tinham um projeto. Só tinham retórica. O projeto de país foi preenchido apenas pelo projeto de poder. Isso aproxima petistas e tucanos. Ambos pretenderam representar o moderno e acabaram se transformando no atraso. Nada mais atrasado do que a subordinação dos interesses do trabalho e da produção ao financismo. Nada mais atrasado do que essa redução da política social a um açúcar compensatório. Nada mais atrasado do que essa aceitação dos arranjos entre endinheirados e governantes. Durante anos se difundiu a idéia de que qualquer alternativa representaria uma aventura irresponsável, salto no escuro, caos econômico. A verdade é que existe uma alternativa moderada, realista, viável com os meios disponíveis e por isso mesmo transformadora.

¿ Como sintetizaria essa alternativa?

¿ Enumero quatro pontos que, no conjunto, teriam um efeito revolucionário. Primeira iniciativa: construir um modelo de desenvolvimento calcado na valorização e não no aviltamento do trabalho e do salário. Um governo não pode gerar milhões de empregos, como geralmente se promete. Mas pode criar um ambiente propício à reativação da economia. A primeira medida é abolir todos os encargos sobre a folha de salário. Essa é a melhor razão para persistir com o grande sacrifício fiscal que o povo brasileiro está fazendo. Não se pode castigar quem emprega o trabalhador. O segundo campo de iniciativas é enquadrar os interesses financeiros, subordinando-os aos interesses da produção e do trabalho. Um governo novo deve convocar os 20 senhores que de fato conduzem o mercado financeiro e dizer que, no dia seguinte, eles vão receber a metade.

¿ Não seria um grande escândalo?

¿ Não. Nada ocorreria. Essa metade já é muitas vezes mais do que se paga em qualquer lugar.

¿ Se é tão simples, por que os últimos governos não fizeram isso?

¿ Pela colonização mental. É preciso usar a força de barganha do Estado para propagar práticas produtivas mais avançadas. Isso não ocorre espontaneamente. É resultado de uma ação coletiva. O Estado cria condições para um novo mercado existir.

¿ As avaliações de risco não estremeceriam?

¿ Se há um país que desafia ortodoxias financeiras desse tipo é a China, de longe o maior destino dos investimentos estrangeiros. A médio prazo, nem os mercados financeiros vão para onde se cultua a religião deles. Vão para onde há vigor econômico.

¿ E as outras iniciativas?

¿ Uma política social como capacitação e não como compensação. Isso implica a definição da melhoria da qualidade do ensino público como prioridade suprema da política social. Dizer que a educação é prioridade suprema significa dizer que não será possível ter os mesmos avanços dramáticos em outros setores.

¿ Em todas as eleições, ouvimos os candidatos dizerem que educação é prioridade. Não é um lugar-comum?

¿ Vamos ao ponto. Dizer que educação será prioridade significa dizer que a saúde, por exemplo, não vai ser a prioridade. Não vou dizer que criarei 10 milhões de empregos, como não vou dizer que vamos resolver tudo. Vou dizer o contrário. Vou falar da situação dramática e que se a educação for prioridade, a saúde não será. O brasileiro ouvirá verdades desagradáveis.

¿ E a quarta prioridade?

¿ Melhorar a democracia brasileira. Não nos interessa uma democracia sonolenta. Precisamos de práticas e instituições que facilitem a resolução rápida dos impasses, o engajamento da cidadania e a combinação de traços da democracia direta com traços da democracia indireta. Por exemplo, o direito dos eleitores de cassar os mandatos de mandatários infiéis.

¿ Qual a proximidade entre seu pensamento teórico e suas idéias como pré-candidato?

¿ Nossa vida intelectual está dominada por fatalismos. Minha obra teórica é uma guerra declarada contra esses fatalismos. Reconheço que o livro que estou lançando é uma obra teórica, aparentemente distante dessas preocupações que foram o objeto da nossa conversa. Mas há muitos elos. É preciso esclarecer que a proposta programática que faço como pré-candidato não é a repetição de uma doutrina teórica. Eu jamais transformaria uma candidatura presidencial no veículo de minhas idéias teóricas. Tenho consciência de que uma candidatura presidencial é um projeto coletivo. Meus interlocutores são menos os intelectuais e mais os grupos organizados da sociedade. E estou tendo uma experiência assombrosa.

¿ Está sendo compreendido?

¿ Nem sempre. Mas há uma ânsia de buscar um caminho. Há uma grande abertura. Sou alguém estranho para eles. Não sou um político profissional. Sou uma pessoa cerimoniosa, formal. Sou desajeitado, falo com sotaque de estrangeiro. É duro. Mas quando sou perguntado sobre o sotaque, digo que é melhor falar com sotaque do que pensar com sotaque. O Brasil é uma grande confusão anárquica e criadora. A dificuldade é uma só: acender as luzes. Comunicar a mensagem.